DÖRTE SCHNEIDER GARCIA - ENTREVISTA

Nome: Dörte Schneider Garcia

Idade: 49 anos

Profissão: Green Consultant (Film&TV)

As duas obras mais significativas da tua carreira profissional:

Como assistente de realização – „Alice” e „São Jorge”, ambas realizadas por Marco Martins.


Onde e em que função trabalhas? 

Sou freelancer em Portugal, onde mudei um pouco de rumo depois de ter trabalhado durante quase 20 anos como assistente de realização. Hoje em dia sou „Green Consultant certificada” para produções de imagens em movimento (na Alemanha, Film & TV” significa cinema e audiovisual). Havendo ainda pouco trabalho nesta área em Portugal, dedico-me muito à sensibilização sobre o tema e à educação para os assuntos que se prendem com a sustentabilidade (na sua plenitude), dando workshops tanto cá como internacionalmente, e no meu papel enquanto coordenadora do curso para green consultants da Universidade Lusófona. É a primeira vez que este curso é dado numa língua que não seja a alemã, e isso é de louvar!

És uma das primeiras pessoas em Portugal que se dedica totalmente à sustentabilidade na indústria cinematográfica. Explica-nos brevemente o papel dos Green Consultants e qual a sua importância.

Até há uns meses eu era mesmo a única pessoa a trabalhar nesta área em Portugal. Fico muito feliz que agora já sejamos mais, pois quem participou na primeira edição da formação na Lusófona entretanto também está a trabalhar para tornar as produções por cá mais  „verdes”. Na verdade, eu tenho pena que a função se chame assim, pois parece que limita a atenção ao campo ambiental, quando na verdade devemos olhar para os 3 pilares em conjunto, incluindo o social e o económico, que são igualmente importantes, e não se podem separar. Um(a) green consultant é alguém que, em conjunto com a (empresa) produtora, desenvolve um plano tanto para as produções como para os processos internos das empresas em si, a fim de encontrar soluções que deixem uma menor pegada no meio ambiente, e propondo alternativas viáveis do ponto de vista orçamental também. Isto é feito respeitando o bem-estar das pessoas envolvidas, da equipa e da comunidade. Para mim o chamado green shooting ou green producing são a única maneira que temos de produzir, respeitando o limite dos recursos disponíveis para nós enquanto espécie. Está tudo a mudar à nossa volta – com a crise climática chegam fenómenos meteorológicos extremos, incêndios, perda de biodiversidade etc. A nossa única hipótese é mudarmos também – e para melhor. Talvez um dia o green producing se tenha tornado tão normal que não precisemos mais dos green consultants.

Sentes-te reconhecida na função que desempenhas no teu campo profissional?                   

O que me ajudou muito em ser aceitada foi o facto das pessoas me conhecerem da minha  „vida anterior” como assistente de realização, e de saberem que era conhecedora do meio. Mas ainda há um caminho muito longo a percorrer. Circulam algumas ideias muito limitadas do que é ser uma produção green ou  „mais sustentável”. Existem preconceitos que gostaria de eliminar. O green washing é uma ameaça constante. Estamos neste momento em processo de criação de uma associação das e dos green consultants em Portugal, e espero que em conjunto possamos esclarecer as dúvidas existentes sobre a nossa função e utilidade. 

Muitas pessoas pensam que a sustentabilidade aumenta os custos de produção ou complica os processos. Pensando nas produções cinematográficas mais pequenas, que são a maioria em Portugal, que possibilidades têm de se transformar?

Esta é realmente uma das ideias feitas mais comuns, e que muito gostaria de ajudar a desfazer. Se o nosso foco for uma utilização mais consciente dos recursos, podemos até ajudar a economizar! Como disse antes, devemos olhar para a sustentabilidade na sua plenitude, considerando sempre os 3 pilares que referi. Sim, existem tecnologias que são, num primeiro momento, mais caras, mas que mais à frente podem criar poupanças significativas. Em Portugal, pelas verbas muito reduzidas disponíveis para produzir (isso seria outra longa conversa...), é costume poupar-se aqui e ali, o que nos torna mais sustentáveis à partida. A meu ver, qualquer produção pode tomar medidas que visem diminuir a sua pegada ecológica. Para tal é essencial que se conheçam os hot spots das produções, que costumam estar localizados na parte da utilização de combustíveis, ora para os geradores, ora para transportes de todo o tipo. O que ajuda a descobrir esses hot spots é o cálculo da pegada de CO2, que é uma das nossas tarefas também enquanto consultores.

Um filme de Hollywood gera em média 3.000 toneladas de emissões de CO2. Em Portugal, se não me engano, produzimos cerca de 7 toneladas de emissões por ano na indústria cinematográfica/audiovisual. Claramente isto é um impacto ambiental significativo. Podes dar-me alguns exemplos concretos para reduzir estas emissões? 

Atenção, essas 3.000 toneladas são uma média, e são filmes com orçamentos altíssimos, as chamadas produções tentpole. Nem todas as produções de Hollywood criam pegadas tão altas. Parece haver uma ligação entre o tamanho do orçamento e da pegada criada, no entanto.

Em Portugal ainda não há dados suficientes para apresentar médias, só agora estamos a começar a calcular as pegadas das produções onde trabalhamos.

Mas para dar uma ideia: uma publicidade que eu acompanhei em Portugal, e que foi produzida como um service, foi responsável pela emissão de cerca de 40 toneladas. 40 toneladas para um resultado final de 90 segundos no ecrã. É desproporcional. Uma pessoa a viver em Portugal é responsável pela emissão de cerca de 5,9 toneladas de gases com efeito de estufa por ano, segundo a Pordata. Esse valor diz respeito ao ano de 2019. Ora, nas produções temos de cortar a utilização de combustíveis fósseis para baixar a pegada. Isso quer dizer optimização dos transportes, planeamento. É preciso tempo para isso, não dá para fazer “em cima do joelho”. Quando falta tempo entramos em reaction mode. Uma maneira fácil de cortar emissões é também reduzir a quantidade de produtos de origem animal no catering, por exemplo.

Atualmente dás aulas na universidade em Lisboa e workshops em Portugal. Para além disso, como podemos informar-nos sobre conceitos de Green Shooting, Green produção e distribuição? Existe alguma plataforma, uma organização? 

Há uma plataforma extremamente útil que foi resultado de um projecto da Comissão Europeia, chama-se Green Toolkit Film & TV. Eles editaram um booklet, e no site têm uma base de dados que é constantemente actualizada. Existem blogues e sites dedicados ao assunto, e nas redes sociais também há presenças importantes. A nível internacional há mesmo muita coisa a acontecer. Em Portugal temos um  „Guia Green Shooting” que está disponível no site da PFC em português e inglês. A meu ver, o meio por cá deve preparar-se para o dia em que a atribuição de subsídios for condicionada, e o projecto que apresentar uma estratégia de sustentabilidade fique melhor posicionado – como já acontece na nossa vizinha Espanha, por exemplo, ou a nível de apoios da UE. Para ajudar com estas questões há agora green consultants disponíveis aqui, e queremos trabalhar e aplicar na prática o que aprendemos. 

O Green-Story-Telling normaliza certos comportamentos, é mais consciente e, de certa forma, também abre caminho para nos ligarmos à diversidade e à interseccionalidade. Em Portugal, o Green-Story-Telling ainda não é muito conhecido. Tens algum exemplo de um filme, que tenha uma green-story-telling, para percebermos um pouco melhor o conceito?

Na minha perspectiva, o green storytelling é quase tão importante como o green producing. Nós enquanto criadores de narrativas temos um poder muito grande para influenciar comportamentos e normalizar certas atitudes, ou até estigmatizar outras. O que é que retratamos como sendo „cool”? É andar de Porsche? Podemos criar o mundo em que gostaríamos viver e torná-lo atraente para quem vê os nossos filmes. Sem limitar a liberdade criativa! Não estou a falar em fazermos filmes de propaganda, ou documentários sobre temas ambientais. Mas na verdade nem é preciso ir até ao green storytelling... quantos filmes em Portugal é que passariam o famoso “Bechdel Test”?! A mim incomoda-me que possamos quase contar pelos dedos de uma mão os filmes em que vemos (pelo menos) duas mulheres como figuras principais de um filme, em que ambas as personagens tenham um nome (e não  „vizinha” ou  „amiga”), e que tenham diálogos que sejam sobre algo que não um homem. Respondendo à questão, um exemplo de um bom green storytelling para mim é a terceira temporada da série dinamarquesa “Borgen”, sendo que toda a série vale bem a pena ser vista. Há plataformas online exclusivamente dedicadas a fornecer ferramentas a quem escreve guiões, como por exemplo Good Energy Stories, Climate Spring, ou ainda Screens of Tomorrow. E sim, há uma espécie de  „Bechdel Test” para a sustentabilidade ambiental de um guião.

Numa entrevista, falaste da importância de regressar fisicamente à terra e de entrar em contacto com a natureza. Neste contexto, podemos também falar de ecofeminismo. Como é que o podemos integrar no ativismo feminista? De que forma é que o feminismo do futuro pode incluir melhor o ecológico?

Acho que a nossa sociedade apresenta uma série de desequilíbrios, que de certa maneira podem estar interligados. E cabe-nos a nós descobrir essas ligações, e estabelecer outras mais saudáveis. É curioso como as pessoas dedicadas à sustentabilidade muitas vezes são mulheres, ou se definem como tais. Terá a ver com uma sensibilidade diferente? Eu volto a frisar que na sustentabilidade devemos ter em conta os 3 pilares e trabalhar para que estejam equilibrados. Não nos adianta sermos  „ecologicamente correctos” quando não somos socialmente justos e inclusivos. Há que abraçar uma visão holística e tentar uma abordagem sistémica. É desse tipo de transformação que necessitamos. 

Pensando no futuro, o que gostarias de transmitir aos realizadores e produtores de cinema de hoje para que tornem a sustentabilidade mais consciente?

Há um slogan do grupo de trabalho Green Screen da Interreg Europe: No Planet, No Film. É tão simples quanto isto. Há que perder o medo de mudar e começar a fazer diferente. É só um passo de cada vez. Quando a pandemia nos obrigou a mudar a maneira de produzir também o soubemos fazer. Sim, é incómodo deixar para trás algo que fazemos assim há décadas. Mas só porque sempre o fizemos assim não quer dizer que seja a maneira certa. Fazer de maneira certa é ouvirmos a nossa consciência. É imaginar um diálogo que podemos vir a ter com alguém da geração que agora é nova.  „Na altura em que ainda havia escolhas, o que fizeste? Foste parte da transição ou ficaste de fora?” A resposta a esta pergunta é a nossa responsabilidade agora. 

E por fim: há alguma mulher que te inspira profissionalmente?

Muitas! Como disse, são maioritariamente mulheres que estão ligadas a este campo. Algumas que admiro são Mairi Claire Bowser, que na Escócia é responsável pela transformação do sector cinematográfico, Paloma Andrés Urrutia que em Espanha trabalha ligada tanto à formação, como à produção e escrita, Katja Schwarz, uma das pioneiras na Europa, green consultant e neste momento presidente da associação alemã do sector, Linnea Merzagora, que em Itália e a partir de lá trabalha na  „Green Film”, um sistema de certificação ambiental de filmes, Zena Harris e Clara George no Canadá que estão ( com muitas outras pessoas) a desenvolver um pacto mundial (apoiado pela ONU) para um meio cinematográfico mais sustentável em todos os sentidos, e Gabi Kay nos EUA que criou em conjunto com outras pessoas uma non profit para acelerar a transição no mundo da publicidade, para nomear apenas algumas.

A autora é nossa associada: Kathrin Frank


LUIS DE FILIPPIS - ENTREVISTA

Nome: Luis De Filippis

Profissão: Realizadora

As duas obras mais significativas na tua carreira profissional:

  • For Nonna Anna (2017)

  • Something You Said Last Night (2022)


Em que função trabalhas na indústria cinematográfica e qual é tua situação profissional atual?

Eu sou uma realizadora que se concentra em escrever e realizar filmes narrativos de ficção. Mais recentemente, tenho estado a desenvolver uma tour com a minha primeira longa-metragem, "Something You Said Last Night", desde a sua estreia no TIFF - Festival Internacional de Cinema de Toronto em setembro do ano passado.

A tua primeira longa-metragem, "Something You Said Last Night", é sobre uma jovem mulher trans que oscila entre ligar-se a e amadurecer, afastando-se, da sua família, durante uma viagem com todos. A história decorre num espaço confinado e acontece no contexto de um microcosmos, dentro de um curto período de tempo. Por que escolheste esse tempo-espaço-microcosmos para a narrativa do filme?

Preencher uma página em branco pode ser uma tarefa assustadora. Existem tantas maneiras de contar uma história, e a quantidade de escolhas, para mim, na verdade, é um obstáculo no processo criativo. Gosto de impor limitações e restrições a mim mesmo. Neste caso, foi um único local. Isso também foi a minha mente de produtora a entrar em ação, e a fazer-me pensar de forma pragmática. 

Eu sabia que seria desafiador financiar a minha primeira longa-metragem e não queria desperdiçar tempo e recursos preciosos procurando ou mudando de localizações. Quanto mais tempo pudéssemos dedicar à realização efectiva do filme, mais forte o filme seria.

A relação de apoio entre mãe e filha é uma mudança bem-vinda em relação às típicas representações, clichês e narrativas traumatizantes frequentemente vistas em filmes queer. As pessoas trans são muitas vezes retratadas nos filmes de forma unidimensional. Ren, por outro lado, é uma personagem complexa, e um membro confiante da sua família. Ela não é apenas uma mulher trans, ela é uma irmã e uma filha, e isso vem em primeiro lugar. Conta-me mais sobre a tua motivação.

Na maioria dos filmes sobre pessoas trans, vêmo-las recebendo amor, apoio, dependendo muito dos outros personagens. Mas Ren é uma personagem que dá tanto quanto recebe, às vezes até mais do que recebe. Por outro lado, acho importante afastarmo-nos de uma tendência que existe de colocar personagens trans num pedestal. Podemos ser confusos, tomar decisões erradas, ser egoístas, não precisamos ter todas as respostas. Ren é uma personagem que faz o melhor que pode, mas, no fim de contas, tem falhas, e é nas suas falhas que nos reconhecemos, independentemente de sermos trans ou não.

O teu filme permeia o quotidiano de uma família sensível, com uma grande profundidade amorosa; a autenticidade das atrizes é excelente. Como trabalhaste com elas para alcançar esse tipo de profundidade? Que influência isso teve na mise-en-scène do filme?

Passámos muito tempo juntos antes das filmagens, só eu e os quatro membros principais do elenco. Não ensaiamos cenas propriamente ditas, mas apenas convivemos, improvisamos e exploramos a dinâmica entre todas as personagens. Cada uma delas tem a sua relação única e eu queria que isso transparecesse no filme. Por exemplo, a relação de Guido com Siena, a sua filha mais nova, é muito diferente da sua relação com a filha mais velha, Renata. E é nas pequenas coisas que isso se vê. Os actores tinham de estar muito à vontade uns com os outros na vida real, não se pode fingir esse tipo de ligação.

Por que escolheste filmar o filme em 35mm?

O formato de 35mm obrigou-me a ser específica e fazer escolhas ousadas. Não existe, por exemplo, a opção de se filmar infinitamente de diferentes ângulos. Chega-se ao set todos os dias sabendo-se exatamente o que é preciso A experiência de filmar em película mantém as coisas precisas e concretas.

Uma das tuas declarações é: "Temos tantas outras histórias para contar com uma perspectiva diferente e uma representação verdadeira (We have so many other stories to tell with a different perspective and with a truthful representation)". Como achas que podemos educar as pessoas para mudar a narrativa (e não apenas a narrativa no ecrã)?

Gostaria de ver mais histórias sobre pessoas que normalmente não vemos, contadas de maneiras que normalmente não experimentamos. Mas, ao mesmo tempo, essas histórias e esses personagens não precisam de ser políticos ou "ensinar lições". Eu não fiz este filme com o objetivo de educar ninguém, apenas queria contar uma história honesta sobre uma rapariga e a sua família. Dito isso, se o filme puder ajudar algumas pessoas, fico feliz.

Podes contar-nos mais sobre o programa de mentoria para jovens transgénero que criaste (https://www.transfilmmentorship.com/)?

Sim, estou muito orgulhosa dessa iniciativa. Os produtores e eu iniciamos um programa de mentoria para pessoas transgénero, que acolheu cinco jovens trans para participarem na produção do filme. Eles foram inseridos em diferentes departamentos e trabalharam sob a liderança criativa de cada um destes departamentos. Os “mentees” foram membros essenciais da equipa, estiveram connosco desde a pré-produção até o final da produção, não se tratava apenas de um programa de observação; para o bem e para o mal, estavam nas trincheiras connosco. Desde então, já realizamos mais três edições do programa de mentoria, e hoje temos 19 ex-alunos, muitos dos quais estão ocupados, com vários trabalhos já alinhados, e a prosperar enquanto profissionais na indústria cinematográfica.

O que gostarias de transmitir a outras mulheres e artistas trans que desejem construir uma carreira dentro e fora da indústria cinematográfica?

Não será fácil. As desilusões serão constantes. Rodeia-te de pessoas que possuam a mesma tenacidade que tu. Trabalha com pessoas que sejam melhores do que tu naquilo que fazem, mas assegura-te que os teus valores estejam alinhados em primeiro lugar. E tem amigos que não sejam cineastas, que não tenham nada a ver com o cinema ou a indústria. A apatia deles em relação ao que acontece no mundo do cinema manter-te-á com os pés na terra e servirá como um lembrete constante de que se trata “apenas de um filme".

Que filmes te influenciaram mais como realizadora de cinema? Que artistas consideras como modelos a seguir?

Os filmes que me influenciaram enquanto realizadora foram aqueles que davam maior prioridade à sua construção visual e evocavam emoções por meio de narrativas subtis, com nuances. Realizadoras como Céline Sciamma, Andrea Arnold, Sofia Coppola e Naomi Kawase inspiraram-me com sua habilidade de criar filmes atmosféricos e emocionalmente marcantes que desafiam as convenções narrativas tradicionais. As suas abordagens únicas para o cinema e a sua capacidade para capturar a essência das experiências humanas são uma fonte de inspiração para mim e para o meu trabalho.




Esta entrevista foi traduzida do inglês.

A autora é nossa associada: Kathrin Frank

Revisão: Mariana Liz


ANDREIA BERTINI - ENTREVISTA

Foto: © Lena Wan

Nome: Andreia Bertini

Idade: 47

Profissão: Colorista


Quais são as duas obras mais significativas da tua carreira profissional (ou as que te inspiram)?

É difícil para mim escolher dois filmes, pois o meu trabalho tem muito a ver com a relação que se estabelece durante o processo de criação do ambiente do filme, tanto com o/a realizador/a, como com o/a DF. Não é só a forma de comunicar e de entender o outro, mas principalmente como confias e confiam em ti.

Ainda assim, tenho dois filmes marco na minha carreira profissional:

A Costa dos Murmúrios, da Margarida Cardoso, com fotografia da maravilhosa Lisa Hagstrand. Foi o primeiro filme em Portugal filmado em digital e depois transferido para 35mm: um processo que foi bem moroso e experimental na altura.  

E Cristóvão Colombo, O Enigma, do Manoel de Oliveira, com fotografia da Sabine Lancelin. Foi o primeiro filme em que trabalhei directamente com o realizador Manoel de Oliveira,  e é um marco por tudo o que aprendi e me diverti com ele. 

Onde e em que função trabalhas, e qual é a tua situação profissional actual? 

Sou colorista e desde o início deste ano que tenho o meu próprio estúdio, quase 20 anos depois de ter começado a trabalhar em cor.

Sentes-te reconhecida na função que desempenhas no teu campo profissional?

Sim, neste momento não me posso queixar a esse nível.

O que te faz tão apaixonada pela cor? E qual é o teu segredo como colorista? 

A paixão surge de uma necessidade existente na altura, pois não havia ninguém a corrigir cor em digital. Eu era montadora, trabalhava na altura nos laboratórios da Tobis Portuguesa, e comecei a fazer alguns ajustes nas imagens - muitos documentários eram filmados em DV ou Mini DV, outros em Beta Digital ou SP - e o gosto foi crescendo. Foi uma fase muito experimental e estava bastante inconsciente do que poderia surgir dali. Muito ”punk rock", como costumo dizer em piada. Acho que o segredo para qualquer profissional na área é saber ouvir e comunicar sem sombras.

Dás ao filme, à série, o seu aspecto final. Quanta liberdade criativa tens neste processo?

Depende muito de com quem estou a trabalhar, mas neste momento sinto que tenho bastante liberdade criativa, e, quanto melhor conheço a pessoa, mais natural é o processo. Muitas vezes começo a falar com as pessoas antes da rodagem, para pensarmos juntos sobre a melhor forma de chegar a um determinado ambiente.

O que desejarias para o futuro no que diz respeito à igualdade de género dentro e fora da tua área profissional?

Desejo que esse futuro de igualdade chegue rápido, pois ainda estamos tão longe, apesar do tanto que já se gritou por ele.

Achas que já houve mudanças positivas?

Acho que sim. Passo a passo. No outro dia falava com uma DF, que também é eletricista e maquinista, e ela dizia que era muito mais duro para ela conseguir espaço sendo mulher. É uma das primeiras maquinistas em Portugal, algo bem recente, e está sempre presente a questão da força física.

No inquérito que a MUTIM publicou há umas poucas semanas atrás, infelizmente, os dados relevam que a grande maioria das trabalhadoras do sector cinematográfico e audiovisual já foram sujeitas a discriminação e/ou assédio no local de trabalho. Quais são as tuas experiências pessoais neste contexto?

Também me aconteceu, mas não foi nada de muito grave ou com que não conseguisse lidar ou resolver na altura. Aconteceu-me uma outra forma de agressão sexista e com colegas da mesma profissão - que foi o mais triste - numa tentativa de descredibilização e menosprezo do meu trabalho. Tive que ouvir muitas tiradas do género: só gostam do teu trabalho porque és gira ou só trabalham contigo porque és gaja.

Que conselho darias a jovens mulheres e dissidentes que queiram iniciar uma carreira como colorista? 

Seguir tutoriais ao início e depois fazer, testar e desfazer. E voltar a fazer, muito!

Qual mensagem deixarias às mulheres do Cinema e Audiovisual? 

A luta não é só nossa, é de todos e é longa, mas firmes venceremos.

Muito obrigada!

A autora é nossa associada: Kathrin Frank


REGINA PESSOA - ENTREVISTA

Foto: © Rene Volfik

Nome: Regina Pessoa

Idade: 53

Profissão: Realizadora

As obras mais significativas da carreira profissional:


Quando te deste conta de que querias ser realizadora de animação? Fala-nos um pouco da tua trajectória

Conheci a animação por acaso. Sempre trabalhei para pagar os meus estudos e no início do meu 3º ano na Faculdade conheci algumas pessoas que trabalhavam no único estúdio de animação do Porto da altura. Viram os meus desenhos, gostaram e perguntaram: porque não vais ao estúdio? Estamos a começar uma nova curta de animação, e precisamos de pessoas para trabalhar. Eu fui e mostrei os meus desenhos ao diretor do estúdio, Abi Feijó. Ele gostou e disse: começas amanhã.

No início trabalhei nos filmes do Abi e mais tarde ele deu-me a oportunidade de poder desenvolver as minhas próprias ideias, o que era muito excitante. Mas a seguir ao primeiro entusiasmo de poder vir a desenvolver o meu próprio filme, percebi que não era assim tão simples: dei-me conta que a minha formação era visual, não tinha o hábito de escrever histórias e pouco sabia de cinema. E quanto mais eu tentava seguir as noções gerais de escrita de um argumento, mais desinteressante era o resultado, e mais bloqueada ficava. 

Então o Abi disse-me: não ligues a essas regras da escrita de um argumento, não te preocupes em escrever um texto segundo as normas, pensa apenas em algo que seja importante para ti. Se o que tens a dizer é realmente forte e importante para ti, irás dedicar-te de corpo e alma, e isso vai ver-se nas tuas imagens. É essa a motivação de que precisas para te ajudar a ultrapassar todos os problemas e etapas da execução do filme. E no final, as pessoas que virem o filme de alguma forma sentirão também essa força nas tuas imagens.

Esse foi, é e será sempre um dos ensinamentos mais úteis que aprendi: procurar no meu interior uma imagem, uma sensação ou emoção que seja realmente importante para mim. Foi assim que surgiu a ideia e a motivação para a fazer a minha primeira realização em animação que foi a curta metragem A Noite, que é sobre uma criança que tem medo do escuro, inspirada na minha infância e na relação com a minha mãe. E continuei a seguir esse ensinamento do Abi para todos os projetos seguintes.

Podes descrever o teu processo criativo? Tens uma forma particular de trabalhar?

Sou frequentemente convidada para falar sobre o meu trabalho, o que me obrigou a refletir sobre o meu processo criativo, e isso levou-me à consciência que necessito de passar por várias etapas. A ideia ou intenção pode começar por uma imagem que me inspira ou um som; por uma memória; pode ser sugerida por alguém; por algo de natureza pessoal.

A animação é quase sempre um trabalho longo, extenuante, passam-se por momentos de frustração e surgirão dúvidas e vontade de desistir. Assim, pergunto-me pela motivação, para que nunca se perca de vista o objectivo final.

A pesquisa documental também é essencial, e passa por procurar autores, documentos, textos, ou imagens, ou até inspiração noutras formas de expressão artística que ajudem-me a documentar, desenvolver e consolidar a ideia. Rodear o meu espaço de trabalho com essas imagens, objectos e coisas que me inspiram, cria uma zona de conforto e ajuda-me no meu processo. 

Demora pelo menos 3 dias até que apareça algum desenho interessante. Pode ser algo tosco mas pode haver aí um detalhe, um traço, uma mancha que me dá uma pista para desenvolver outra imagem. Depois experimento com diferentes materiais, suportes, formas de expressão, cores, iluminação. Logo aparece o caminho gráfico a adotar para o projeto. Este momento é muito importante, porque a partir daqui começa a execução do projeto. 

O que é que te inspira?

A partir do meu primeiro filme, ao tentar escapar da dificuldade que era a minha falta de formação em cinema e em argumento, a forma que encontrei para conseguir criar histórias foi falar de temas simples a partir das minhas memórias e vivências pessoais. Medos, a solidão, a diferença são pequenas coisas que parecem simples e sem importância, mas com as quais eu me sentia mais à vontade porque eram despretensiosas e porque eu as conhecia bem. Isso dava-me mais coragem para abordar esse meio completamente desconhecido para mim que era o cinema: pelo menos eu sabia do que estava a falar.

Depois, quando esse filme ficou pronto e começou a circular, fiquei surpreendida por o filme ser bastante bem acolhido. E dei-me conta que era possível criar as minhas histórias. Não são os grandes contos fantásticos que me fascinam, mas sim os pequenos episódios do quotidiano. 

Nos filmes seguintes continuei a explorar essa via, inspirando-me na minha própria história, na minha infância e nas pessoas que me rodeavam.

Que métodos de animação gostas de utilizar e porquê?

A minha formação foi em Artes Visuais/Pintura, onde nos era incutido o cuidado na composição da imagem, das técnicas, das texturas orgânicas, o poder do claro/escuro. Enfim, o gosto artístico marcado pela História de Arte.

Quando conheci a Animação, era essa a bagagem que possuía e apliquei-a no meu primeiro filme A Noite. Eu tinha consciência de que se tratava de uma história muito simples, que só poderia ganhar vida se eu fosse capaz de criar o visual, o drama e tratamento de som certos. Assim, usando gravura em placas de gesso, uma técnica completamente louca para se fazer em Animação, esforcei-me por transmitir o melhor que sabia em cada desenho a emoção que procurava, dando um grande ênfase à expressão dos personagens, ao jogo de luz e sombras, e criando assim, através de  uma textura muito orgânica e uma atmosfera monocromática, um ambiente forte e interessante.

Gostei muito do resultado visual e nos meus filmes seguintes continuei a explorar e desenvolver técnicas de gravura animada, usando meios e suportes diferentes à medida que a tecnologia foi evoluindo. Por vezes gracejo e digo que as minhas técnicas evoluíram “da pedra ao pixel”, uma vez que o meu primeiro filme foi executado literalmente em Gravura Animada sobre Pedra (gesso), e passei depois por fases em que utilizei outros suportes mais leves como Gravura Animada sobre Papel. Mais recentemente comecei a introduzir também as novas tecnologias (Pixel).

O meu estilo pessoal foi sendo  através das diferentes ferramentas que experimentei, e esse trajecto permitiu-me compreender como é importante definir a nossa própria linguagem pessoal. Quaisquer que sejam os meios utilizados, estes devem estar ao serviço do autor e não o contrário.

Qual é a parte mais gratificante e também a parte mais desafiante de ser uma realizadora de animação?

Realizar um filme é sobretudo a possibilidade de dar continuidade a uma aprendizagem que nunca se esgota. A cada filme que começo, coloco-me a mim própria pequenos desafios pessoais. Tento sempre não repetir fórmulas e tentar algo novo, e volto sempre a sentir o arrepio no estômago e a pergunta na cabeça: Será que vou conseguir? E essa incerteza que, se for equilibrada de forma a não bloquear a criatividade, é o que faz o trabalho progredir, evoluir, ir mais longe.

A realização em cinema de animação é um território de cruzamento de diversas formas de arte que engloba o cinema, a escrita, a música e o som, ou o desenho. É um campo extremamente privilegiado para uma evolução contínua a nível artístico e pessoal.

Que conselhos darias às mulheres que querem ser realizadoras de animação?

O conselho que posso dar a qualquer pessoa que queira realizar é o que pergunto a mim própria quando começo um novo projecto: o que quero dizer e porque sinto que tenho que fazer este projecto. Segundo a minha teoria, é a tentativa de resposta a esta questão que me vai dar a motivação que é a força motriz essencial para atravessarmos todo o processo. Depois vem a última pergunta: como vou fazer o filme (ou seja, que forma lhe vou dar, como vai ser a imagem, as cores, o som, a música)?

Sou mulher mas sinto-me antes de tudo um ser humano e sempre tentei que fosse esse o guia da minha conduta antes da noção de género: honestidade intelectual, generosidade com os outros (a equipa), e humildade com os resultados. O centro das atenções deve ser o trabalho, e não o ego do realizador.

Nas tuas histórias, exploras temas autobiográficos que desenvolves a partir das tuas memórias de infância, por exemplo, sobre a tua relação com o teu tio e a tua mãe. Podes falar-nos mais sobre isso?

A forma que encontrei de contar histórias foi a de falar dos pequenos eventos comuns, dos assuntos que conheço melhor: os meus. Vivi até aos 17 anos numa pequena aldeia num Portugal rural e atrasado saído da ditadura, no seio de uma família muito pobre, como eram a maioria das famílias da altura. Esse curto período de infância e adolescência foi marcado por experiências tão fortes para mim que determinaram os conteúdos e direção da carreira artística que viria a ter. A minha família era disfuncional e com casos de doença mental, como a minha mãe que tinha esquizofrenia, ou como o seu irmão, o Tio Tomás, que tinha “as suas manias”. Inspiro-me nas memórias desse período e abordo nos meus filmes esse tipo de personagens atípicas, porque foram esses os modelos de adulto e de mundo que tive.

Também foi assim que acabei por encontrar a minha própria motivação: a de prestar homenagem e um tributo às pessoas anónimas que conheci. As situações que represento baseiam-se em pequenos dramas das suas vidas, é a minha forma de “escrever”, quer a minha própria história, quer a deles. Sinto que eles não puderam ter voz e serão esquecidos se eu não falar deles.

Ainda assim, tenho o cuidado que os meus filmes não se esgotem num simples visionamento, e tento sempre usar vários níveis de conteúdo e interpretação, referências subtis ou pistas simbólicas que espero que se vão revelando ao espectador a cada visionamento. Os meus filmes são muitas vezes estudados para reflexão de temas como “os medos na infância”, “o papel da diferença na sociedade” ou, “a herança que uma geração deixa à seguinte”. O 20 anos depois os meus filmes ainda são extremamente vistos.


História Trágica com Final Feliz é muito provavelmente o filme português mais premiado de sempre, e o teu nome encontra-se em terceiro lugar na lista dos 50 melhores animadores do mundo. Também recebeste o Prémio Bárbara Virgínia, destinado às realizadoras com maior destaque na história do cinema português. Que importância tem este prémio para ti? 

Receber prémios é estimulante, sobretudo quando estamos a começar a carreira. A nível pessoal acabam sempre por ser sentidos lá no fundo como uma validação de que o nosso filme afinal vale a pena.

O prémio Bárbara Virgínia teve uma grande importância para mim por duas razões principais. Primeiro, por causa do meu percurso pessoal, e uma vez que a minha origem é no “Portugal profundo”, longe dos grandes centros urbanos e de cultura. Segundo, porque me  dedico a um formato (a curta-metragem) e a uma técnica do cinema (a animação) bastante marginais, muitas vezes vistos como estando no fundo  da hierarquia do cinema.

Toda a minha vida tenho lutado pelo reconhecimento da curta-metragem de autor em animação com paciência, perseverança e estratégia: conheço o meu país, sei que se tivesse ficado apenas por cá à espera que reconhecessem o meu trabalho, provavelmente isso nunca iria acontecer. 

Comecei a fazer os meus filmes em coprodução com países onde o cinema de animação já tinha há muito alcançado grande respeito. Vivi e trabalhei longos períodos nesses países, o que me permitiu aprender imenso sobre a forma de trabalhar e de divulgar este arte. O meu trabalho ganhou outra dimensão, ficou mais arejado e profissional e uma vez os filmes prontos tiveram grande aceitação e reconhecimento nos principais festivais e eventos internacionais. 

Com distinções de nomes sonantes como o Festival de Annecy, European Film Awards, Oscars’ Short-list, ou Annie Awards, o público em Portugal começou a aperceber-se que afinal talvez haja algum interesse neste trabalho. Foi um longo percurso e ao receber o Prémio Bárbara Virgínia senti a sua extrema importância não apenas como realizadora mulher, mas também como se o cinema de animação tivesse sido finalmente reconhecido pelo Cinema Português.

Achas que as mulheres que contribuem para o cinema português são suficientemente valorizadas? 

Há muitas hierarquias no cinema em geral, não apenas no cinema português.Apesar de começarem a ser reconhecidas algumas realizadoras femininas, tenho a impressão que o papel da mulher nesse meio ainda se resume bastante à sua imagem projectada no écran, imagem essa que corresponde ainda muito à fantasia masculina da “Mulher”.

No nicho do Cinema onde trabalho, a curta de animação de autor, existem bastante mais mulheres realizadoras que no cinema de imagem real. Diria que a proporção da presença feminina nos distintos postos de trabalho é próxima dos 50%.

No entanto, na indústria da animação de séries e longas-metragens, por exemplo, onde há grandes orçamentos e lucros envolvidos, ou em nomeações importantes como os Óscares, Annie Awards, e European Film Awards, a presença de mulheres baixa drasticamente. Ainda há muito caminho a percorrer.

Os teus filmes são feitos principalmente com co-produções, também porque é difícil financiar filmes de animação em Portugal, incluindo através de apoios do ICA. Que mudanças gostarias de ver no país para facilitar o financiamento deste tipo de trabalho? 

Comecei esta estratégia de coprodução com outros países porque na altura o meu projecto para o filme História Trágica com Final Feliz foi recusado para apoio pelo júri do então ICAM.

Assim, para conseguir fazer o filme foi necessário procurar apoios financeiros da França, do Canadá e uma pré-compra do Canal ARTE - o projeto teve apoio do Português no ano seguinte. 

Não era fácil nessa altura.No entanto, com o tempo as condições foram mudando. E hoje temos já uma boa comunidade de cinema de animação, que a cada geração tem contribuído para o apuramento, reconhecimento e afirmação de um cinema de animação de assinatura portuguesa.

Os incentivos do ICA têm sido essenciais para o desenvolvimento e afinação de uma identidade artística nacional, cujos resultados começamos agora a ver cada vez mais encorajadores. Esses incentivos serão mais importantes que nunca para que esta vitalidade a que se assiste neste momento se possa desenvolver e afirmar cada vez mais.

Mas a tutela - ICA e Ministério da Cultura - depende dos poderes políticos que gerem o país Basta vir uma política ignorante e insensível à cultura para que todo este trabalho regrida décadas.

Poderias nomear dois dos teus filmes favoritos relacionados com questões femininas? 

Como a curta de animação é o meu formato de eleição, e ainda é muito pouco conhecido do público em geral, nomeio 2 curtas de animação realizadas por mulheres

When the day brakes (Amanda & Wendy Forbis, 1999): é para mim uma obra prima, um dos meus filmes favoritos de todos os tempos e de todos os géneros  É uma curta-metragem de uma beleza arrebatadora, um filme divertido e extremamente profundo no seu conteúdo, levando o espectador a refletir sobre a natureza humana, as suas relações, o individual e o coletivo e como fazemos parte de um cosmos de vidas interconectadas. Estas  mesmas realizadoras estão nomeadas para os Oscares pela 4ª vez este ano (4ª!!!), para melhor Curta Metragem de Animação. Pergunto-me se, se fossem homens, não teriam ganho logo à primeira.

A minha segunda proposta é Un Jour (Marie Paccou, 1998): é um filme de apenas cinco minutos, lindíssimo, curto e eficaz, com uma estética extremamente forte. Aborda o tema intimista da perda com a precisão, simplicidade e sensibilidade com que só uma mulher poderia descrever.

Ver também a curta-metragem de Regina Pessoa: História Trágica Com Final Feliz

A autora é nossa associada: Kathrin Frank


VANESSA FERNANDES - ENTREVISTA

Foto: © Gabriel Renault

Nome: Vanessa Fernandes

Idade: 44 anos

Profissão: Realizadora e artista visual

Área de atividade: Cinema  / performance / artes visuais 

As duas obras mais significativas da carreira profissional:

Si Destinu (2015)

Mikambaru (2016)

Onde e em que função trabalhas? 

Vivo no Porto e trabalho um pouco por todo o lado. Sou realizadora, formadora e artista. Nos últimos anos tenho exposto o meu trabalho em galerias de arte, participado em residências artísticas e colaborado com artistas de outras áreas, desde a performance ao circo, da dança a projectos activistas. 

Tenho mais dois projectos em parceria com meu companheiro, Ivo Reis; Espectro Visível, mais relacionado com o cinema experimental, com a fusão de imagem real e digital, instalações multimedia, projectos sociais e formativos; e animatevisuals com videomapping ou projectos de dimensão mais gráfica e digital. 

Qual é a tua situação profissional actual?

Trabalho por conta própria e iniciei o Doutoramento em Estudos Fílmicos e da Imagem na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Para ti, o que é importante na construção das tuas personagens femininas e nas histórias que escreves?

Tanto em “Si Destinu” como em “Mikambaru”, as personagens principais são duas jovens Guineenses imigrantes em Portugal, antes de mais, por serem retratos pouco esclarecidos e quase inexistentes no cinema português. Também o são porque tenho uma necessidade pessoal em dialogar sobre temas com que me identifico, onde habitam as minhas preocupações e que me conectam com a minha cultura e origem. 

Tentei retirar estas jovens de contextos típicos de estereótipos sociais. Principalmente, quis colocá-las a dialogarem entre si sobre os assuntos que lhes dizem respeito, sem serem arrastadas por algum tipo de falso salvamento. Em “Si Destinu”, Awa é uma menina a quem a família pretende praticar a excisão feminina, e em “Mikambaru”, Eva é vítima do seu passado colonial. Ambas estão inseridas num sistema que as persegue, aprisionadas pelos hábitos e vínculos das gerações anteriores e arrastadas para um passado que já não lhes faz sentido. Tenho uma necessidade enorme em questionar o espaço entre gerações e reflectir sobre os processos de uma possível mudança, as transições, e, principalmente, expor os lugares de reflexão. 

Também acabo por falar de mulheres cúmplices e coniventes com o sistema patriarcal e colonialista.Interessa-me pensar nos fantasmas e o saudosismo que vai para além das crenças, na fragilidade destes contrastes entre ser e ter, e revelar os lugares de pertença que derivam do privilégio. 

Numa visão feminista, em que direcção está a evoluir o mundo profissional do Cinema e Audiovisual? 

A produção audiovisual está a mudar e cada vez há mais realizadoras. Isso é maravilhoso, mas ainda estamos longe de ter igualdade de género no cinema. 

Essa evolução deve-se às quotas, aos movimentos feministas que têm persistido nas suas lutas, à criação de cinema independente e à digitalização que torna o processo de produção fílmica muito mais económico. Infelizmente, tudo isto é extremamente dependente dos contextos políticos, o que fragiliza o crescimento do cinema no feminino; precisamos de leis muito mais convincentes que protejam e estimulem, tanto as criadoras, como o público. 

Durante muito tempo não entendia a necessidade de se falar de feminismo no cinema ou nas artes - ingenuidade minha, pois sem isso vivemos de silêncio e à sombra de um sistema que já está demasiado sedimentado. O equilíbrio, só o conseguimos colectivamente e com persistência, é um processo de mudança e é fundamental estarmos conscientes disso para podermos construir algo para as próximas gerações.  

Contribuindo para gerar diálogo e comunidades, como pode o cinema ajudar a aumentar a visibilidade?

Sei que não há nada como ver um filme numa sala de cinema, mas é urgente se falar de cinema e se assistir cinema em escolas, espaços associativos, pontos de encontro, eventos e festivais: cinema por todo o lado e para todas as classes!

O cinema sensibiliza porque espelha, revela e expõe, faz-nos reflectir e acima de tudo, identificar. 

Há um aumento significativo de mostras e isso tem trazido diálogo e uma possibilidade enorme de encontro entre comunidades que nunca se vêem representadas. Gosto muito do que tem feito a Maíra Zenun com a Nega Filmes, a apresentar ciclos de cinema em bairros mais desfavorecidos. Com isto criam-se lugares de reflexão e debate. 

Tenho participado em alguns eventos, como por exemplo com a Djass Arte, MICAR, e outros organizados pela SOS Racismo. São momentos de partilha, muitas vezes emocionantes e afetivos, onde há uma fruição muito particular de se ver cinema para além do olhar. A sensação de justiça também vem ao de cima, são lugares onde conectamos e percebemos a importância dos direitos humanos.  

Os teus filmes circulam em torno de questões como racismo, mutilação genital feminina, cultura, herança, dança, raízes e a memória pessoal. Neste contexto, parece-me que se enquadra no conceito de ativismo cinematográfico. Concordas com isso? Como descreverias as tuas criações artísticas?

Sim, eu própria o nomeio dessa forma: o que faço no meu trabalho é ativismo. São temas que me atravessam, contêm histórias de família, pessoas próximas que me inspiram, e, principalmente, que me permitem continuar a luta dos meus pais que fizeram parte de movimentos independentistas na Guiné-Bissau. E claro, como guineense, vejo o colonialismo ou qualquer tipo de ocupação como uma força de poder a erradicar. 

Tenho vindo a trabalhar em contextos onde as minorias ainda se sentem reprimidas e afectadas pelo racismo e pela discriminação, as mulheres ainda são penalizadas pelo facto de serem mulheres, a comunidade LGBTIQ+ não é respeitada, nem representada, a violência para com a comunidade negra é persistente. 

O cinema é um diálogo constante com o modo como vemos o mundo, como o imaginamos. Para mim, produzir imagens é também pensar um lugar onde todos possam viver de forma justa. 

Vários dos teus filmes são campos férteis de experimentação e exploram diferentes línguas. Conta-nos um pouco mais sobre isso.

“Si destinu” e “Mikambaru” são as minhas primeiras curtas metragens e são produções independentes. Foram feitas com pouca experiência, uma equipa maravilhosa de amigos, pouco dinheiro e muitos sonhos. Realizei estes filmes com tudo o que tinha, ideias e ambições criativas. Queria fazer filmes onde se ouvisse o crioulo, aliás, os personagens falam crioulo de Guiné-Bissau, crioulo de Cabo Verde e português, o que é uma forma de unir os vários universos que me ocupam. Isso também acontece em relação às decisões estéticas… “experimentação”, será a palavra certa, tomei alguns riscos e tenho consciência disso. 

Desde “Tradição e imaginação”, a agora aos vídeo poemas “Mar inventado” (com voz e poema de Matamba Joaquim) e “Abro mais uma gaveta” (com voz e poema de Raquel Lima), estes lugares de experimentação já não são postos em causa, identifico-me com a videoarte e com a possibilidade de misturar a performance no meu trabalho fílmico.

Como descreverias a representatividade do cinema afrodescendente e negro em Portugal? Achas que houve mudanças positivas nas questões de igualdade, diversidade e equidade no Cinema e Audiovisual?

Há algum cinema afrodescendente com visibilidade em Portugal. Pocas Pascoal, Silas Tiny, Maíra Zenum e Welket Bungué são alguns dos realizadores em constante produção. Alguns obtiveram apoios do estado, outros são autores independentes, e a maior parte de nós produz por amor à camisola e por saber a importância do nosso trabalho. Cada vez há mais criadores negros e o cinema afrodescendente faz-se porque há uma urgência em ser feito, mas é precário, como já o é para muitos realizadores portugueses. O cinema não é uma prioridade em Portugal, e existem muitos estigmas que não nos deixam evoluir, principalmente no que diz respeito à gestão financeira na cultura: menos Big Brother, mais arte. 

Temos a MICAR, organizada pela SOS Racismo, que é um momento importante no que diz respeito à representatividade do cinema antirracista e de temas que nos dizem respeito. De resto, há uma resistência muito grande por parte das instituições, os temas de que falamos não interessam a um público generalista, ainda há muita negação quanto às questões da luta contra o racismo. Muitos portugueses não se sentem na obrigação de pensar sobre estas coisas, nem sequer têm interesse nestes temas. Quanto mais avançamos na luta contra a invisibilidade das minorias, mais ouvimos que há um foco demasiado grande no assunto, é um contra-senso. 

Como realizadora, que problemas enfrentas em termos de produção, financiamento e distribuição? Que condições poderiam ser melhoradas?

Os critérios de avaliação dos concursos de financiamento são muito exigentes, e as questões curriculares são um enorme problema. É extremamente desencorajador fazer cinema em Portugal. 

Penso que o cinema português se fecha em si mesmo a viver o estigma do elitismo. É feito por poucas pessoas e para poucas pessoas, está à mercê de um olhar crítico e condicionante, é um meio muito pequeno e muito competitivo.

Não faltam salas de cinema e condições de exibição, mas o cinema americano conquistou o público português, criando um fosso enorme na produção nacional. A televisão poderia ter um papel importante na divulgação do cinema português, e não o faz. A corrida para as audiências é um problema para a cultura, para o pensamento colectivo e para a nossa evolução de forma geral. Quanto mais público tivéssemos, mais cinema se produziria. Mas para isso é preciso educar e estimular o público. 

O que desejarias para o futuro no que diz respeito à igualdade entre homens e mulheres dentro e fora da tua área profissional? 

Desejo respeito mútuo, salários e possibilidades de emprego iguais, independentemente do género, da cor, raça ou estatuto social. Seria um equilíbrio para qualquer sociedade termos a possibilidade de viver em lugares altamente criativos e empáticos. A discriminação e a desigualdade são estruturas características de sociedades violentas e sedentas de poder. Penso que já vivemos desta forma durante demasiado tempo. É tempo para a mudança. 

Qual é o teu ponto de vista sobre o sexismo no campo profissional do Cinema e Audiovisual? Alguma vez sofreste algum episódio de discriminação ou assédio?

O meu contexto de trabalho é muito familiar, nunca sofri discriminação nem assédio nos projectos em que trabalho, porque se tratam de equipas pequenas, grupos de amigos, e, mesmo nos circuitos de exibição, estou sempre em presença de pessoas em luta pela justiça e pelos direitos humanos, ou seja, em  lugares seguros. Mas assédio… aquele convite duvidoso, sim, e nem chego por perto. Muitos homens em situação de poder têm tendência para “arrastar a asa”... é nojento e revela uma grande falta de maturidade. São homens que se aproveitam da sua posição para exibir a sua capacidade de possuir… aquele tom de “até te arranjo trabalho se…”, é horrível! 

Qual mensagem deixarias às mulheres do Cinema e Audiovisual?

É importante entendermos que há uma falha, que somos uma minoria e que não há igualdade de género na produção cinematográfica em Portugal. Como não tenho tido a possibilidade de acompanhar muitos festivais, perco a oportunidade de ver alguns filmes. Nesse sentido, parece-me que a MUTIM também pode ser um lugar para partilhar cinema, ou sabermos onde e como ter acesso ao cinema feito por mulheres. Temos de tentar fazer mais umas pelas outras. 

A autora é nossa associada: Kathrin Frank


CRISTÈLE ALVES MEIRA - ENTREVISTA

Foto: © Gabriel Renault

Nome: Cristèle Alves Meira

Idade: 39 anos

Profissão: Realizadora

As duas obras mais significativas da carreira profissional: Alma Viva (2022) e Invisível Herói (2019)

Onde e em que função trabalhas? Qual é a tua situação profissional atual?

Trabalho em França e em Portugal. Sou realizadora e argumentista dos meus próprios projetos, mas também escrevo para outros autores de cinema. A minha atividade principal é escrever e ler argumentos de filmes.

Como começou a tua vida no cinema?

Comecei a fazer cinema de forma autodidata. A minha vontade de filmar começou muito cedo, quando comprei a minha primeira camara mini DV nos anos 2000. Filmava o meu bairro, cresci nos arredores de Paris, numa zona de muita emigração africana. Por exemplo, muitos trabalhadores malianos viviam perto da minha casa nuns prédios unicamente para homens malianos. Era uma forma de viajar sem sair de França. Também filmei, durante muitos anos, a minha família nas férias em Portugal ou nos momentos de reuniões familiares. Nasci em França, com pais portugueses, e regressávamos todos os anos para as férias em Portugal. Compreendi muito cedo, intuitivamente, que o cinema tinha o poder de parar o tempo, que me permitia imprimir rostos, momentos de vida, histórias para sempre. Escolher filmar alguém é experimentar o milagre de olhar para ele, seja ele um ator profissional ou não. Quando se olha para alguém, ele muda e revela-se, é realmente muito emocionante filmar alguém, foi exatamente isso que me fez querer fazer filmes. O meu primeiro filme foi um documentário em Cabo-Verde sobre a música e a morabeza, e tinha um jovem rapaz da ilha do Fogo como protagonista. Depois também fui para Angola filmar um retrato de um jovem nas margens da cidade de Luanda. Comecei a filmar com vontade de questionar as minhas origens portuguesas através da sua história colonial. O meu pai saiu de Portugal para fugir à guerra colonial, emigrou para França nos anos 70 como milhares de outros portugueses. Ao ir filmar em Cabo Verde e em Angola, é como se voltasse inconscientemente a algo não dito da história dos meus pais. Porque nunca foi fácil para o meu pai assumir essa emigração forçada. Os meus pais deixaram o país deles por causa do regime muito rígido de Salazar e as condições de vida extremamente precárias que existiam, não tiveram escolha. Trabalharam em França, durante mais de 40 anos, com a sensação de terem que provar cada vez o que valem. Era necessário fazer melhor que os franceses para existirem.

Como definirias o teu estilo enquanto realizadora?

Sou alguém muito humanista. Tenho imenso prazer em reunir uma equipa, em convencer as pessoas a acreditarem no meu próprio sonho e a entrar ao meu lado numa aventura coletiva. Sou muito cuidadosa para não estragar a relação das pessoas com quem trabalho, sou alguém que precisa de comunicar. Mas muitas vezes no trabalho, com a urgência das filmagens, os imprevistos ou as contrariedades posso ser alguém bastante direta. Sou uma realizadora que gosta de fazer tudo e de estar atenta ao trabalho de cada um. Quero sempre estar a parte de tudo, sou muito exigente e perfecionista, vou ver os detalhes porque tudo conta e quero ter a certeza que estamos todos a trabalhar no mesmo sentido. É muito difícil saber se as tuas palavras foram bem interpretadas, uma mesma frase pode ter um sentido diferente para pessoas diferentes e fazer um filme é conseguir transmitir a tua visão a toda uma equipa e fazer com que todos caminhemos na mesma direção. Confesso que sou autoritária quando é necessário ganhar respeito e impor limites, mas no fundo não gosto desta posição que acho um pouco arcaica. Até não gosto desta questão de hierarquia no cinema. Por exemplo, na rodagem de Alma Viva, insisti para que os figurantes pudessem comer com o resto da equipa artística, mas infelizmente não foi possível por razões práticas de espaço. Mas fiquei um pouco revoltada com isto porque cada pessoa que entra no filme vale a mesma coisa. A questão do poder e da afirmação deste poder incomoda-me. Preferiria não ter de exercer este poder para chegar aos meus objetivos. A sociedade impõe às mulheres serem fortes, guerreiras para conseguirem. Fiz a minha primeira longa como se fosse uma maratonista. Mas quando me vinham as lágrimas aos olhos por detrás do monitor não me escondia para chorar porque penso que temos de mudar este modo de representar-nos sempre valentes ou invencíveis. Mulheres ou homens, está na hora de assumirmos a nossa própria vulnerabilidade e a nossa sensibilidade, de termos coragem de não fingir ser outra pessoa, de sair do retrato que a sociedade quer que assumamos.

Que filmes, autoras e realizadoras te inspiram profissionalmente?

As influências variam de um projeto para outro. Mas para Alma Viva tive algumas mentoras ao meu lado como Lucrecia Martel e o seu filme O Pântano ou Alice Rohrwacher com O País das Maravilhas ou Corpo Celeste. O livro de Mona Chollet “Bruxa, o puder invicto das mulheres” permitiu-me assumir o assunto do meu filme sem medo. E digamos que Agnès Varda me ajudou a libertar-me dos preconceitos que tinha sobre a forma de falar em público. Adoro ouvi-la em entrevistas, ela é uma mulher que se assume perfeitamente, que não finge ser outra pessoa.

Hoje em dia, parece-te que ainda é um desafio ser uma mulher realizadora de cinema?

Claro que sim. Estamos num momento histórico da revolução feminista, com o movimento “me too” a organização das relações entre os homens e as mulheres na sociedade a transformar-se. Estamos a repensar e a redefinir as regras do nosso sistema antigo de dominantes/dominados. Mas a realidade é que no terreno ainda estamos a precisar de “quotas” para restabelecermos um equilíbrio na representação das mulheres e dos homens no cinema. No meu caso, ouvi muitas vezes homens dizer-me com um sorriso que o facto de ser mulher ajudava porque era tempo de recompensar as mulheres, que tinha de aproveitar esta fase onde os projetos de mulheres estão a ser postos no centro dos olhares como uma bandeira política. O problema desta fase (mesmo que seja necessária) é que quando ganhamos um prémio num festival, por exemplo, não sabemos se é graças ao nosso trabalho e à qualidade da nossa obra, ou se é para entrarmos nas “quotas”. É um momento um pouco sensível para as realizadoras. O desafio para o futuro é ultrapassar a questão do género. E pensar o mundo fora desta visão binária que nos limita.

O teu filme Alma Viva revisita paisagens e situações que não são novas no cinema português, mas apresenta-as a partir de um ponto de vista feminino. Era consciente esta opção por oferecer uma visão diferente, por exemplo, sobre Trás-os-Montes, a família, e a morte?

Não acredito nesta crença de que existem separações identitárias entre os homens e as mulheres. E não acredito que o facto de ser realizadora faz com que imponha um ponto de visto automaticamente feminino sobre o mundo. Algumas mulheres são masculinas e alguns homens são femininos. E quero acreditar que um homem poderia ter feito o meu filme, os homens também podem ser grandes “feministas”. Espero que o meu filho de 4 anos seja mais tarde um destes homens, é uma questão de educação, de mudar os preconceitos. O meu filme escolhe como protagonistas mulheres de todas as gerações, que têm coragem de se emanciparem de um meio social fechado. O meu ponto de vista é o de uma realizadora que está fascinada pelo poder e pelo mistério destas mulheres. Mas isso não tem nada a ver com o meu lado feminino. Acho que é um perigo atribuir certas emoções a mulheres e outras aos homens. O que é obvio é que Alma Viva é uma homenagem às mulheres poderosas, e que retrata a realidade de uma sociedade matriarcal na intimidade. Em casa, são elas que mandam, que têm o saber sobre o mundo visível e invisível. É a única forma de se libertarem da sociedade patriarcal que faz delas as únicas responsáveis por ter um filho bastardo, que não lhes permite uma sexualidade ilegítima fora do casamento (embora isto seja tolerado para os homens), que assume que criar os filhos sozinhas (sem a presença do pai) é mal visto, e faz delas mulheres de má fama. Estas injunções ainda fazem parte do nosso quotidiano, e é isso que Alma Viva vem denunciar.   

Como foram sendo construídas as personagens femininas do filme – por um lado, tão diferentes entre si, mas por outro, ligadas, de forma tão íntima, enquanto mulheres?

A “sororidade”, esta palavra muito ativa nas conversas feministas atuais, pode ajudar a esclarecer um pouco o que liga as mulheres no meu filme. Mesmo se confesso que nunca pensei nisto quando estava a construir as personagens. O que me inspirou esta relação íntima entre as mulheres é a minha vontade de mergulhar na intimidade de uma casa, de uma família, de permitir ao espetador espreitar pelo buraco da fechadura como faz a Salomé na primeira imagem do filme. O cinema permite isso, penetrarmos em mundos e universos que a realidade não nos permite ver. A câmara tem o poder de quebrar as paredes para observar a realidade e penetrar em lugares íntimos e tabus.

Alma Viva, que apresenta uma perspetiva sobre as mulheres muitas vezes utilizada de forma depreciativa – enquanto bruxas, feiticeiras, “feias, porcas e más”, – é um filme feminista?

Estas histórias de bruxas, de outras épocas, mas arcaicas, continuam a exaltar o nosso sentido da imaginação. Há um interesse renovado em rituais, magia e superstições. Digamos que mesmo que possam existir "bruxos", são principalmente mulheres a serem e terem sido acusadas de bruxaria. Claro que os tempos mudaram, já não se trata de as queimar (como foi o caso durante centenas de anos e que causou o genocídio de milhares de mulheres) mas continuamos a desconfiar delas, a apontar e criticar as mulheres que praticam magia, que são divorciadas ou solteiras, que não querem filhos. Continuam a intrigar, a gerar medo, mas também admiração. No tempo da minha avó, (sob o regime do Estado Novo) ser bruxa era sobretudo uma forma de ter poder numa sociedade onde os pobres e as mulheres não tinham direitos. Era uma forma de existir, de ser respeitada. A avó de Salomé preocupa-se em transmitir os seus conhecimentos ancestrais e secretos à neta, como uma forma de transmissão e de emancipação. O processo iniciático de Salomé começa com a morte de sua avó. Ela entra num território desconhecido e desenvolve a sua própria consciência do perigo para adquirir a sua autonomia. Como nos contos, ela confronta-se com eventos sobrenaturais e aventura-se numa zona escura, ela lida com o seu lado sombrio, movida por um desejo de vingança e morte. A aldeia acusa-a de ser o "Diabo" porque ela não se conforma com o modelo de menina gentil e razoável que a sociedade impõe às mulheres. Ela rompe a ordem estabelecida e liberta-se dos limites. Por isso é acusada de ser bruxa. A minha vontade com este filme era retratar a realidade desta figura (fora dos arquétipos tradicionais que se encontram nos livros para crianças ou nos filmes de terror) e que suscitam um fascínio por vezes mal interpretado. Alma Viva não é um filme de género. É um filme de terreno, quase antropológico, inspirado nas práticas reais de feitiçaria com as quais tive contacto próximo. Passei a minha infância ouvindo histórias de bruxaria e de maldições. Cresci com o ocultismo, com mulheres que são grandes místicas, que acreditam no poder das plantas e dos espíritos. A feitiçaria é realmente praticada nestas montanhas do Nordeste de Portugal, mas como é óbvio em muitas outras partes do mundo também. São rituais que são feitos em segredo e é tabu falar sobre eles. No início, tinha medo de abordar esse assunto no cinema, de torná-lo público. Não sabia se tinha o direito de fazê-lo. Porque sempre vi pessoas esconderem-se para falarem sobre isso. A magia fascina tanto quanto assusta. Quando nos envolvemos com a bruxaria, o perigo é ficar preso nela para sempre. É o que acontece com Salomé, que percebe que a magia gera forças perigosas. Ela está possuída por um demónio que ela ama, sua amada avó que a impele a restabelecer justiça. Ao fazer este filme, permito-me regressar a práticas e pensamentos primitivos. Conto crenças, ainda ativas hoje, que são transmitidas de geração em geração, mas que geralmente são contadas num ambiente privado e íntimo. Porque acredito que o cinema permite reinvestir o espaço através do maravilhoso e de responder a uma visão desencarnada do mundo.

Até que ponto filmes de realizadoras de outra era do cinema português, como Noémia Delgado, Manuela Cordeiro, Manuela Serra ou Margarida Gil, influenciaram o teu percurso, e o tom de Alma Viva em particular?

Vou ser sincera: infelizmente, não vi filmes de nenhumas delas. Vou já aproveitar esta conversa para o fazer em breve. Tenho tantas obras ainda para descobrir, é muito estimulante.

Tenho lido em várias entrevistas citações tuas em que descreves Alma Viva enquanto filme de mulheres. Isto vai para além do facto de ser realizado por uma mulher e de ter personagens femininas no centro da narrativa?

Alma Viva é um filme de mulheres simplesmente devido à questão fatual da narrativa que retrata a vida de mulheres de todas gerações para prestar homenagem à sua vitalidade e à sua força. E o facto de ser uma mulher a olhar para elas faz com que o projeto se torna feminista sem precisar erguer uma bandeira militante. O filme é feminista por natureza, no seu ADN, não por levar um discurso.

Sentes-te reconhecida na função que desempenhas?

Acho que sim. Mesmo se sinto ainda nalgumas relações de trabalho (minoritárias, ainda bem!) alguns preconceitos misóginos que vêm estragar o meu prazer de ser reconhecida. A organização das relações entre homens e mulheres está a mudar, mas ainda posso testemunhar situações muito desconfortáveis, de me sentir dominada pelo peso de homens que precisam afirmar um poder masculino.  Principalmente por parte de homens na casa dos cinquenta anos, que gostam de te falar como se fosses uma criança ou que te querem ensinar a vida. Ainda bem que nem todos não são assim! Trabalhei com homens nos cinquenta anos que se punham à altura do filme e da minha visão sem terem em conta que sou mulher, e dez anos mais nova. Não podemos generalizar e acho que o problema de algumas militantes feministas é generalizarem e porem os homens contra as mulheres. Quero acreditar que esta revolução que estamos a viver, a nova gramática que estamos a escrever para a sociedade do futuro, fará que estes homens sejam uma espécie em vias de extinção!

Dirias que tem havido mudanças positivas quanto à igualdade de género, diversidade e equidade no cinema e audiovisual? Em caso afirmativo, quais?

As “quotas” estão a impor a igualdade e permitem que a diversidade possa existir. Mas temos que ficar atentas porque também sentimos outras forças contrárias que continuam a querer que o poder esteja nas mãos dos mesmos dominadores. Também temos que mostrar como mulheres que somos exemplares e sensatas nas nossas posições. O facto de querermos mudar as regras suscita paixões de purificação, uma forma de apontar bodes expiatórios que é muito perigosa. Não podemos perder em credibilidade e temos que ter um comportamento exemplar para conseguirmos existir com equidade. Fico sempre muito orgulhosa de ver realizadoras portuguesas a ser premiadas em festivais internacionais (Leonor Teles, Cláudia Varejão, Catarina Vasconcelos, Salomé Lamas, Maureen Fazendeiro, Ana Maria Gomes, Sofia Bost, Mariana Gaivão, Catarina Ruivo, Ana Rocha De Sousa, Teresa Vilaverde, Margarida Cardoso, Marta Mateus...) Temos um bastião de realizadoras portuguesas que me faz sentir muito confiante para o futuro.

O que te parece faltar ao cinema e audiovisual português? 

Sinto falta de duas coisas muito concretas. A primeira é a forma como se organiza a paisagem das produtoras em Portugal. O sistema de pontos do ICA não facilita a emergência de novas produtoras no terreno. É um problema bastante grande porque faz com que um pequeno grupo de produtoras possuam todo o poder para financiar os filmes, e sentimos um certo engarrafamento quando é altura de apresentar os projetos nos concursos de apoio publico. A partilha do poder não se faz de forma equilibrada e as colaborações não se renovam, é uma situação um pouco viciada. O segundo assunto tem que ver com os direitos de autor, por exemplo, quando as obras de cinema estreiam na televisão. O sistema parece-me um pouco opaco. Teríamos que nos reunir entre autores do cinema para interrogar o sistema de partilha dos direitos audiovisuais, definindo uma percentagem mínima que revertesse para os autores da obra. A propriedade intelectual é um assunto muito sensível, que deveria ser mais discutido.

O peso da maternidade é algo muito forte para as mulheres. Que desafios enfrentas e como é a tua experiência de trabalho, sendo mãe?

Faço parte das mulheres que não querem ver a maternidade como um obstáculo. Até porque acho que é um preconceito perigoso que tranca as mulheres a função de mãe em casa. Para ser boa mãe não se pode trabalhar e para ter responsabilidades no trabalho não se pode ser mãe. Esta forma de pensar é estéril. É obvio que ser mãe é algo de muito forte que temos que conciliar com a nossa carreira profissional. Mas o homem também tem que lidar com essa responsabilidade de ser pai ao mesmo tempo que tem de ir trabalhar. A responsabilidade não pode sempre pesar nos ombros das mulheres. É um arquétipo do tempo passado que espero que as novas gerações transformem. Já estamos a pensar numa contraceção masculina para que os homens se responsabilizem também em relação à gestação. Em certos países pode ser o homem a tirar licença de paternidade para cuidar do bebé. No meu caso, partilho a responsabilidade dos meus filhos de forma equilibrada com o meu companheiro. E sempre consegui conciliar a minha criatividade com a minha vida de mãe. Tudo é uma questão de organização e de força de vontade.

Que mensagem deixarias às mulheres e dissidentes do cinema e audiovisual?

“Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres” disse Simone de Beauvoir. Está tudo dito nesta frase. Escolher ser realizadora é antes de tudo querer defender as nossas ideias e a nossa visão do mundo para sair da sombra da educação que recebemos e do que a sociedade espera de nós. A sociedade quer fazer de nós seres frágeis, sensíveis, vulneráveis, histéricas, vagabundas, então seremos isto vezes mil para que o que nos limita seja a nossa força!

Questionário e revisão de texto: Mariana Liz

CLAUDIA VAREJÃO - ENTREVISTA

Foto: © Gabriel Renault

Nome: Cláudia Varejão

Idade: 42 anos

Profissão: Realizadora

As duas obras mais significativas da carreira profissional: Para mim são todas significativas. 

Onde e em que função trabalhas e qual é a tua situação profissional atual?

Sou realizadora. Sempre foi este o meu posto dentro do cinema. Nos primeiros anos ainda trabalhei como directora de fotografia, pois tinha sido essa a minha primeira aproximação aos filmes. Mas rapidamente descobri que o meu lugar é a seguir os meus caminhos interiores que se revelam em formas exteriores: os filmes.

Actualmente estás confiante (ou não), relativamente às possibilidades de trabalho para as mulheres e dissidentes na área do Cinema e Audiovisual? 

Mais do que confiante, estou envolvida para que o caminho seja ascendente e em abertura permanente. E não só para as Mulheres mas para toda a diversidade de pessoas e provenientes dos mais diversos contextos. Acredito na expansão humana que nos traz a pluridade, e na capacidade transformadora e regeneradora que as representações diversas podem trazer às nossas vidas.

Mais uma vez, parabéns pelo prémio em Veneza dado a “Lobo e Cão”. Como surgiu a ideia de fazer um filme queer no contexto de uma vida insular e isolada? 

O filme é o resultado de um longo processo de pesquisa e de enorme interesse pelo tecido humano da ilha de São Miguel. Ou melhor, encontrei naquele território uma amostra da vida humana em sociedade que me pareceu representar fielmente os ganhos e os conflitos com que todes nos debatemos. 

A primeira vez que estive em São Miguel foi a convite de uma residência artística do Pico do Refúgio. Num dos primeiros dias dessa temporada, desci até à zona piscatória mais próxima e fiquei a observar um grupo de homens pescadores a arrumar as redes. Eram corpos marcados pela vida do mar, tatuados e embravecidos, rostos agrestes e comunicavam entre si com um jeito de falar difícil para mim de entender. Enquanto os observava, escuto vozes femininas a aproximarem-se. Viro o rosto e vejo um grupo de raparigas muito jovens a caminhar em grupo. A imagem delas era o opostos do grupo de homens: muito jovens, coloridas, com vestidos curtos e festivos e rostos elegantemente maquilhados. Quando passam por mim, percebo que são raparigas trans. Elas sorriem-me e eu devolvo a delicadeza. Continuam a caminhar. Dirigem-se ao grupo de homens. Eu fico preocupada, desconcertada, pronta para as proteger se algo acontecesse. A minha cabeça, formatada, temeu. Mas o que aconteceu de seguida foi ainda mais desconcertante: as raparigas e os homens beijaram-se e riram-se entre si. Percebi que eram família, vizinhança, pessoas próximas entre si.

Esta imagem de mundos aparentemente opostos mas que se enlaçam num território limitado geograficamente, uma ilha, teve um enorme impacto sobre mim. Decidi logo: quero fazer um filme aqui e com estas pessoas. E assim foi. Seguiram-se anos de investigação no território, entrevistas, escrita de guião com as pessoas da ilha, candidaturas a financiamentos, castings, preparações, rodagens, etc. Uma viagem.

Os teus filmes têm uma forte relação com a estética documental. Quais foram os maiores desafios da narrativa ficcional, de modo a não perder a dimensão da realidade? 

Eu não consigo separar com tanta clareza o que é real ou ficção. Ambas as dimensões estão em relação permanente e ajudam-se a potenciar. Neste filme, que se constrói todo em redor de vidas reais, de actores reais, histórias reais e de relações reais, a ficção aparece como potenciadora do que na vida os actores não se permitem a viver, a dizer e, tantas vezes, não se permitem tantas vezes a sentir. A ficção é um lugar de protecção e de experimentação. É um lugar seguro para que as vidas sejam vividas sem limitações. A ficção é, paradoxalmente do que se possa imaginar, um lugar de liberdade.

Como realizadora sentes que o teu trabalho é mais de observação ou de direcção?

O olhar é dirigido por mim, pelo meu mundo interior. Ou seja, o meu trabalho são essas duas dimensões. E tantas mais. 

O que significa para ti o cinema queer? 

Preferia não definir um género, porque isso contraria as minhas convicções e aquilo que tento fazer nos meus filmes. Prefiro esbater géneros. Mas percebendo o que tentam perguntar, eu diria que é um cinema plural, em todas as dimensões. Não só na representatividade. Também no olhar e na forma.

Disseste que no processo da produção do filme "Lobo e Cão" surgiram dúvidas éticas, o que conduziu à primeira associação de apoio à população LGBTQIA+, chamada (A)MAR, nos Açores. Conta-nos um pouco mais. 

Foi durante o casting. Ao conversar com as pessoas candidatas fui-me apercebendo da dimensão de sofrimento que muitas vidas carregavam. E foi para mim muito claro que não poderia filmar a dor das pessoas sem contribuir, de alguma forma, para a melhoria das suas vidas. Um filme é uma contribuição indefinida. Precisava de ajuda profissional para apoio psicológico e social. Na altura, procurei por instituições na Região Autónoma dos Açores que trabalhassem especificamente com pessoas LGBT. Mas não havia. E por isso dei antes uma volta maior e convidei um grupo de pessoas da área da saúde e da área social para criarem comigo o primeiro centro de apoio à população LGBT e famílias dos Açores, chama-se (A)MAR – Açores pela Diversidade. O centro já existe há mais de 1 ano e tem feito um trabalho notável com a população e com as entidades muncipais e governamentais da região. Estou muito orgulhosa da equipa do (A) e muitíssimo agradecida pela ajuda que nos prestaram durante a produção do filme. 

Não quero fazer filmes com forças unilaterais. Acredito no poder transformador das relações e os filmes são o resultado desses encontros, do real à ficção. É sempre um retrato de um encontro.

Como se deu a escolha dos personagens entre a comunidade LGBTQIA+?

Foi através de um casting e da proximidade que as pessoas tinham com as personagens. Ou seja, procurei e escolhi as pessoas que se aproximavam, em termos de experiência de via e de empatia emocional, com as personagens que eu tinha escrito. Depois foi com elas que adaptei o guião às suas próprias vivências. Algumas pessoas optaram por usar um nome distinto da vida real, outras preferiram usar o seu próprio nome, pois não viam distinção entre si e a sua representação no filme, outras ainda foram introduzidas no filme porque, apesar de não coincidirem com nada do que eu tinha escrito, eram cometas inspiradores que não podiam ficar de fora. Foi tudo muito espontâneo e verdadeiro.

Achas que no cinema ainda existem assuntos considerados tabus? Quais são as tuas experiências neste contexto como realizadora? 

O cinema é um reflexo da vida. E a vida está cheia de tabus. A morte, a sexualidade, a diversidade em todas as dimensões (os corpos, as emoções, os percursos de vida, são apenas alguns exemplos). Eu diria que onde existe vida humana, existem tabus. Por isso estamos condenades a esta relação constante com os limites morais e sociais e a sua representação fará parte sempre do cinema. Agora o que é importante também é usar o cinema para transformar o nosso olhar e o nosso mundo interior. É um pas de deux de transformações, internas e externas.

Quais são as referências artísticas e as inspirações para os teus filmes?  

A vida e as pessoas. E a infinita capacidade de pensar e de sentir.

O que desejarias para o futuro no que diz respeito à diversidade dentro e fora da tua área profissional?

Diversidade de pessoas nos postos de liderança. Que a pluralidade seja a inspiração primeira de qualquer criança. Essa é uma das minhas utopias.

O que gostarias de transmitir às futuras realizadoras?

Eu, como o Jacques Rancière explica tão bem no seu livro “O Mestre Ignorante”, acredito muito pouco na pedagogia enquanto ensinamento e aprendizagem de duas figuras desiguais, ou seja, de alguém que sabe mais e outro alguém que sabe menos. Prefiro a imagem que ele evoca no livro: uma floresta e caminhos infinitos para seguir, não existe nenhum mais válido do que outro e qualquer um deles vai dar a uma clareira. O importante é avançar, começar a percorrer o caminho, e ir integrando o passo, o respirar interior, aquilo que se encontra e manter o olhar sempre curioso, evitando olhar para os caminhos vizinhos. Cada caminho tem a sua própria riqueza e ensinamentos. Esta postura interessada e espontânea, perante a vida e as coisas, criará vidas singulares. E é essa coragem para viver vidas singulares que poderá criar o tal mundo plural e diverso de que temos estado aqui a falar.

Que mensagem deixarias às companheiras da área do Cinema e Audiovisual?

Usem o vosso olhar e contem as vossas histórias singulares.

A autora é nossa associada: Kathrin Frank

ISABÉL ZUAA - ENTREVISTA

Foto: Daryan Dornelles

Nome: Isabél Zuaa

Idade: 35 anos

Profissão: Atriz, Diretora, dramaturga, que canta e dança

As duas obras mais significativas da carreira profissional: complexo responder a essa questão… mas Kbela de Yamin Tháiná e Doutor Gama de Jeferson De 

Onde e em que função trabalhas?

Sou uma artista multidisciplinar freelancer, o que significa que não tenho um emprego fixo, sou criadora e para além de criações e co-criações, colaboro com outros artistas, performers, diretoras e diretores em teatro e cinema principalmente.

Qual é a tua situação profissional actual?

Artista independente.

Sentes- te reconhecida na função que desempenhas?

Sim. Apesar da estrutura social ver o meu corpo e minha história como o “outro”, a “outra” história e isso se refletir na arte, infelizmente, mas temos conseguido mudar as perspectivas resgatando a auto-estima e honrando nossas vivências tanto fora da ficção como dentro dela. 

Numa visão feminista, em que direção está a evoluir o mundo profissional do Cinema e Audiovisual em relação ao tema da diversidade e interseccionalidade?

As boas vontades e intenções ainda não são suficientes para uma real mudança, lembrando também que o tokenismo continua atuando de forma muito evidente na maioria das produções, onde existe uma cor dominante culturalmente, que está nos postos de poder, privilégio e decisão.

Nunca poderei ter uma visão feminista sem acrescentar ser negra nessa relação, pois o feminismo por si só é segregado por não abranger todas as mulheres. 

De facto, temos alguns avanços na teoria e na imagética no mundo profissional do Cinema e Audiovisual, mas na prática ainda estamos a anos luz de uma diversidade e democracia racial representativa nesses sectores.

O racismo é um problema estrutural na nossa sociedade e compreende também uma representação frequentemente estereotipada de mulheres negras. O que podemos fazer para o mudar? 

O racismo é um problema estrutural da nossa sociedade que a maioria das pessoas que lutam contra ele são as pessoas que sofrem essa violência e opressão. Quando toda a sociedade tiver como pauta emergente acabar com o racismo, a mudança virá automaticamente.

Tu trabalhas muito no Brasil. Se tiveres de comparar o Brasil com Portugal qual é a principal diferença em termos de produções culturais com uma política descolonizada? 

A principal diferença entre Brasil e Portugal, na minha ótica, é sem dúvida o tamanho dos Países. O Brasil é um país de escala continental onde produções refletem o seu tamanho e com as políticas de ação afirmativa como o sistema de cotas, por exemplo, onde a diversidade nas produções aumentou significativamente nos últimos anos. Em Portugal as produções para além de serem mais reduzidas e se concentrarem geograficamente na capital, Lisboa, refletem muito pouco a diversidade cultural integrada na sociedade portuguesa. 

A importância da interseccionalidade continua a ser fundamental. Mas ainda há muito a fazer para melhorar as condições e o reconhecimento para todas as mulheres. O que desejarias para o movimento feminista neste contexto? 

Desejo que os movimentos feministas sejam menos elitistas e apartados. Quando se pensar em questões de gênero é imprescindível que estejam nesta equação a cor, a classe, a sexualidade. É necessário que se pense numa esfera mais ampliada, justa e de equidade. Audre Lorde diz “Não serei livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo que as suas correntes sejam diferentes das minhas”. Para mim, essa frase aglutina questões sobre o feminismo que acredito: o coletivo. Todas as conquistas individuais são de extrema importância, mas é em conjunto que movimentamos a estrutura social. Ou seja, o Feminismo negro é que é inclusivo. Como Angela Davis diz: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura social se movimenta com ela”.

O que achas que faz falta ao cinema e audiovisual português? 

Financiamento, diversidade e consultoria.  

Há alguma mulher que te inspira profissionalmente? Quais filmes, autoras e realizadoras te influenciam? 

Há sim, muitas, algumas que já se tornaram ancestrais e outras que ainda estão nesse plano, felizmente: Sarah Moldoror, Adélia Sampaio, Whoopi Goldberg, Viola Davis, Hattie Mcdaniel, Mercedes Batista, Ava Duvernay, Sabrina Fidalgo, Vanessa Fernandes, Yasmin Thayná, Juh Almeida, Viviane Ferreira, Larissa Fulana de Tal, Clara Anastacia, Denise Fernandes, Ruth de Souza, Zezé Motta, Léa Garcia, Valdinei Soriano, Lupita nyong'o, Regina King, Kasi Lemmons, Nia DaCosta, Melina Matsoukas, Issa Rae, Michaela Coel, Shonda Rhimes… estas mais ligadas ao universo do cinema… e felizmente conhecendo outras cada vez mais.

E outras mulheres que me inspiram na vivência diária que não separo da arte: Nzinga Mbandi, Nina Simone, Miriam Makeba, Tereza de Benguela, Fernanda Preta, Titina Silá, Carmem Pereira, Lilica Boal, Paulina Chiziane, Angela Davis, bell hooks, Maya Angelou, Audre Lorde, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Audre Lord, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Denise Ferreira da Silva, Grada Kilomba, Chimamanda Ngozi Adichie, Luiza Mahin, Ella Fitzgerald, Wangari Maatha, Leymah Gbowee, Patricia Hill Collins, Ana Maria Gonçalves, Saidiya Hartman, Leda Maria Martins, Djamila Ribeiro, Nina Silva, a minha avó, a minha mãe, as minhas vizinhas, as minhas amigas, entre outras …

A procura de uma estética positiva e a re-significação dos nossos corpos é política. Como traduzes isso na construção das personagens femininas que interpretas?

Como intérprete, mulher e negra, existem vários estereótipos e pré-conceitos impostos social, política e artisticamente. Ao longo da minha trajetória e tomadas de consciência, procuro nas minhas criações e parcerias, resgatar a imagética de corpxs negrxs nos objetos artísticos com autoestima, permeando as personagens de subjetividade e contradição dando caminho á “humanidade”. Nesse sentido, trazer a diversidade e multiplicidade nas narrativas, ajuda a sair desse olhar preconceituoso. É extremamente importante que as dramaturgias se desapeguem da lacuna de acreditar no mito da “história única e oficial'', para se basearem nas suas escritas, pois isso torna-as falaciosas, pobres e obsoletas. 

Li que o teu desejo é criar uma casa de cultura na periferia de Lisboa. Conta-nos um pouco mais.

Sim. Um desejo antigo mas que a cada dia se torna mais urgente. Ter um espaço onde se partilhe arte, onde se desenvolvam criatividades, formações, expansão, nutrição a todos os níveis… parece-me de extrema valia e importância.

Que mensagem deixarias às mulheres e dissidentes do Cinema e Audiovisual?

RESILIÊNCIA é a palavra que tem que estar todos os dias na folha de serviço/ordem do dia

e

O maior talento que podemos ter é não desistir. Isso não significa que tenhamos que aguentar violências e absurdos, muito pelo contrário, às vezes desistir do “outro” para existir em “nós”.



A autora é nossa associada: Kathrin Frank 

ADRIANA BOLITO - ENTREVISTA

Nome: Adriana Bolito

Idade: 48

Profissão: Directora de Som

As duas obras mais significativas da carreira profissional:

“Amor Fati”, de Cláudia Varejão e “A Metamorfose dos Pássaros”, de Catarina Vasconcelos.

Onde e em que função trabalhas e qual é a tua situação profissional actual?

Sou operadora de som, directora de som, e trabalho como freelancer essencialmente em documentário, foi aliás em documentário que me formei, nos Ateliers Varan, na Fundação Calouste Gulbenkian. Estou ligada a uma pequena produtora que ajudei a fundar, em 2002, a Ricochete Filmes, também muito ligada ao documentário, à qual se juntou, mais tarde, outra produtora, a Continue Walking. Temos em conjunto um atelier onde partilhamos espaços, material, tempo e ideias. Apesar de estar na formação da Ricochete também trabalho com outras produtoras. Tenho tido uma relação mais próxima com a Terra Treme e com a Primeira Idade.

Como definirias o teu trabalho e estilo como directora de som?  

Não sei bem se existe um estilo definido para um director de som. Acho que cada projecto tem o seu estilo, a sua linguagem própria. Durante a rodagem a partitura sonora e visual vai-se compondo à medida que o filme se vai tecendo. Às vezes são os sons que vêm ter connosco, aparecem inesperadamente. Outras vezes vamos procurar determinados ambientes e determinadas texturas. Cada filme é um trabalho único e irrepetível. 

Muitas vezes, durante determinados takes, tenho uma espécie de epifania sonora e ao falar com a realizadora ou realizador sobre esses mesmos takes especiais percebo que é quase certo que aquele plano vai fazer parte do filme. É algo meio místico e que pode soar a uma coisa meia absurda, mas é o que realmente acontece. 

Se tivesse que definir o meu trabalho diria que sou uma directora de som de documentário, apesar de também gostar de fazer ficção.

A realidade mostra que existe uma percentagem baixa de directoras e operadoras de som. Porque pensas que isso acontece e o que achas que deve mudar para que mais mulheres entrem nesta profissão? 

Eu acho que há cada vez mais mulheres a fazer som. Eu vejo que na MOSCA (Movimento dos Operadores do Som para Cinema e Audiovisuais) existem muitas mulheres e bem mais dinâmicas do que eu. Estou certa que daqui a uns anos isto nem será mais uma questão. Durante muito tempo, o meio do cinema e dos audiovisuais teve certos sectores praticamente reservados aos homens. Não era apenas na área do som, nas outras áreas, câmera, realização, muitas outras eram e ainda são, infelizmente, mais ocupadas por homens do que por mulheres.

Para fazer som, e especialmente para fazer perche, é necessário estar fisicamente bem preparado e julgo que durante muitos anos achou-se que uma mulher não teria tanta capacidade de estar horas a fazer perche, porque nós somos naturalmente feitos de preconceitos, todos nós, homens e mulheres. Como foi uma profissão maioritariamente feita por homens, os directores de som até há relativamente pouco tempo não estavam confortáveis ou não concebiam simplesmente a ideia de trabalhar com mulheres assistentes e escolhiam naturalmente homens. 

Normalmente, no som, começamos por ser assistente e só depois passas a directora. Ora, se os directores de som homens apenas escolhiam homens para o cargo de assistente era muito difícil para uma mulher começar a fazer som.

Estou certa que hoje, em 2022, muitos dos directores de som homens já não têm nenhuma questão em convidar uma mulher para assistente de som.

Acho que está, ainda que lentamente, a mudar. Não quero dizer com isto que estamos em pé de igualdade. Mas que está a mudar é um facto. 

Quando comecei a fazer som, em 2006, existiam muito poucas mulheres a trabalhar no som: a Armanda Carvalho, a Raquel Jacinto e a Michelle Chan. Falo no cinema que é a área em que me movo, mas sei que na televisão e publicidade também há cada vez mais mulheres.

Eu tive a sorte de ter sido convidada por duas realizadoras, que também estavam a começar o seu percurso no cinema, a Cláudia Alves e a Rita Brás que acreditaram em mim. E, nesse mesmo filme, tive um grande incentivo da Graça Castanheira e da Cláudia Varejão, que foram as montadoras desse documentário, que me deram os parabéns pelo meu trabalho, pois sabiam que estava a começar. Era o meu primeiro filme depois da escola.

Pouco tempo depois tive mais uma vez a sorte, pois o Joaquim Pinto, que foi meu professor de som nos Ateliers Varan, viu o meu potencial e deu o meu nome para fazer uma curta. Como muitas vezes acontece, um trabalho puxa o outro e aqui estou em 2022 a trabalhar no som com pessoas que eu gosto muito e que já fazem parte da minha família de amigos.

Sentes-te reconhecida na função que desempenhas no teu campo profissional?

Sim, sinto que sou reconhecida, embora eu trabalhe numa espécie de bolha. Tenho o privilégio de trabalhar com pessoas que já eram ou que entretanto se tornaram minhas amigas e que estão associadas a produtoras mais pequenas ou recentes, como a Terra Treme e a Primeira Idade, onde nunca senti na pele a diferença de tratamento entre géneros. Também não sei nada do que se passa no mundo da televisão ou da publicidade. Apesar de ter a consciência de que os prémios valem o que valem, o Prémio Sophia Melhor Som que recebi este ano, juntamente com a equipa de som do filme “A Metamorfose dos Pássaros”, foi também uma forma de ver o meu trabalho reconhecido. 

O peso da maternidade é algo muito forte para as mulheres. Que desafios enfrentas e como é a tua experiência de trabalho, sendo mãe?

Quando fui mãe decidi fazer uma pausa durante um ano mas depois foi muito complicado regressar ao trabalho. Quando tens um filho pequeno é muito difícil conciliar os dias de rodagem infindáveis, com semanas a fio, com a vida pessoal. A menos que tenhas uma rede familiar que te apoie - o que não era o meu caso, que tinha apenas a minha irmã que podia ajudar.

Foi nessa altura que deixei praticamente de fazer ficção. O documentário, além de ser o género de cinema com que me identifico mais, acabou por ser o género que se concilia mais com a minha vida familiar, pois é mais espaçado no tempo. Numa curta de ficção ficamos 4 semanas sem vida, numa longa ficamos oito a dez, são processos muito intensos, entras numa espécie de vortex, o que é realmente interessante para o processo, mas quando tens filhos isto tudo é muito difícil. 

A rodagem de um filme documental é mais estendida, durante meses, um ano ou mais, mas menos intensiva, sendo que acabo por ter mais tempo para estar com a minha filha, apesar de ser mais moroso.

Das poucas vezes que trabalhei em Televisão tive o privilégio de trabalhar no “Armário”, uma série sobre moda apresentada pela Joana Barrios e, como a Joana também é mãe, as filmagens respeitavam os nossos horários e necessidades como mães.

Se calhar precisamos de mais mulheres mães à frente de projectos.

Quais condições poderiam ser melhoradas para as mulheres e dissidentes?

Num mundo ideal deveríamos trabalhar menos horas, ser mais bem pagas, ter mais tempo de licença de maternidade. Mas isso é uma luta de todas as trabalhadoras e trabalhadores em geral.

Como a maioria das pessoas que trabalha em cinema é precária e está a recibos verdes, nem sequer pode ter licença de maternidade ou paternidade. Ou deixa de trabalhar para dedicar tempo aos filhos ou terá que colocar os filhos em berçários ainda com poucos meses. Nem todas as pessoas podem ter o privilégio de deixar de trabalhar para dedicar tempo aos filhos. 

Mesmo depois do tempo de licença, para quem tem direito a ele, é realmente complicado conciliar uma rodagem de uma longa ou até mesmo curta com a vida familiar, especialmente quando tens filhos muito pequenos.

Sei que algumas mulheres que trabalhavam em som deixaram de o fazer quando tiveram filhos. 

Numa visão feminista, em qual direcção está a evoluir o mundo profissional do Cinema e Audiovisual? 

Mais uma vez só posso falar no mundo do cinema que conheço, no mundo da televisão e da publicidade não tenho noção de como estão as coisas.

Sei que há mais mulheres a fazer som e tenho a certeza que as gerações que estão agora a sair das escolas de cinema terão cada vez mais mulheres a ocupar lugares que foram durante anos quase exclusivamente ocupados por homens. Espero que daqui a uns anos isto não seja mais uma questão.

Qual é o teu ponto de vista sobre o sexismo e o racismo no campo profissional do Cinema e Audiovisual? Alguma vez sofreste alguma discriminação ou assedido?

Nunca sofri assédio, mas lá está, eu trabalhei sempre com pessoas que conhecia bem, ou relativamente bem. Mas já senti discriminação, pontualmente. Percebo que muitas vezes as pessoas não têm noção que estão a discriminar. E quando as chamo à atenção ficam normalmente a reflectir. “Não dirias isso a um homem” é a frase que mais uso nestas situações. 

Num dos primeiros filmes em que trabalhei como directora de som, em 2006, tive um assistente, que por acaso era um homem, que foi escolhido pela produção.

Durante o filme a maior parte das pessoas da equipa assumia automaticamente que eu é que era a assistente, por ser mulher e por ser jovem.

Mais tarde, na estreia dessa curta, na Cinemateca, vi que nos créditos finais do filme o nome do assistente/perchista aparecia como director de som a par comigo, e logo a seguir, em todas as fichas técnicas desse filme e nos sites dos festivais o meu nome foi literalmente obliterado. 

Na altura, 2007, eu estava a começar, ainda era muito verde e não tive coragem para confrontar o realizador ou a produtora. Hoje isso não aconteceria.

Existe racismo no sector do cinema em Portugal. Não um racismo declarado, mas sei que é muito difícil, por exemplo, para uma actriz ou um actor negros trabalharem em exclusivo na sua profissão em Portugal, mais ainda do que já é para qualquer um.

A única vez que trabalhei em publicidade, em 2007, estávamos a gravar um vox pop na rua (entrevistas na rua) e o copy veio ter comigo e com o director de fotografia a dizer para não perdermos tempo a entrevistar “pessoas não brancas”, que “o cliente não ia usar na sua publicidade pessoas não brancas”… Na altura foi um grande soco no estômago para mim e para o director de fotografia e até hoje não trabalhei mais em publicidade. Mas também reconheço que a publicidade parece estar cada vez menos preconceituosa e com uma abordagem mais inclusiva. Ou serão apenas novas directivas de marketing?

Qual mensagem deixarias às companheiras da área do Cinema e Audiovisual?

Que apesar das coisas estarem muito melhores a luta é contínua. Que nunca desistam, apesar das dificuldades. E que para cada injustiça haja uma denúncia. Que se entenda que o que permitimos a nós mesmas permitimos a todas. E não deixem de ser mães, as que gostariam de o ser, por causa do trabalho. E tudo isto vale para as mulheres que trabalham em cinema ou noutra área qualquer.



A autora é nossa associada: Kathrin Frank 

MARIANA GAVIÃO - ENTREVISTA

Nome: Mariana Gaivão

Idade:  38

Profissão: Realizadora, montadora de cinema

As duas obras mais significativas da carreira profissional

Na realização, recentemente o “RUBY”.

Na montagem, este ano colaborei em “Fogo Fátuo” de João Pedro Rodrigues, “Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois”, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata e “Great Yarmouth: Provisional Figures” de Marco Martins, entre outras obras.

Onde e em que função trabalhas?

Desde muito cedo, ainda durante a Escola de Cinema, comecei a trabalhar como montadora de cinema e esse foi um caminho muito feliz para mim. Ao longo dos anos fui trabalhando cada vez mais e com pessoas que me marcaram muito profissional e pessoalmente. A minha estrutura de vida, de sobrevivência, foi sempre a trabalhar no cinema como montadora. Isso foi e ainda é um enorme privilégio. Um espaço muito particular e íntimo para pensar o cinema. Enquanto construía as possibilidades para poder realizar, as duas vidas foram-se entrelaçando. A montagem é, para mim, uma forma maravilhosa de pensar o cinema num espaço privilegiado, e a realização é o que me preenche mais plenamente mas tem longos percursos até ao financiamento e término de cada obra. Por isso os dois caminhos equilibram-se.

Eu conheço várias montadoras que depois pensavam na realização de filmes. Contavam que a montagem as ajudou depois com a narrativa e estrutura técnica do filme. Como é a tua experiência?

O que encontrei na montagem foi uma dimensão única do cinema. Uma que não vinha apenas da fotografia, da literatura, ou do teatro. Esta ideia da emoção no tempo, ou do tempo interior de um plano ou do frame - todas essas dimensões de tempo que não apenas o corte, que não apenas os blocos narrativos, eram como uma descoberta secreta e mágica. Não é nada único dizer isto, o Esculpir o Tempo do Tarkovsky dirá tudo isto muito melhor, mas a prática diária de estar a montar e perceber que estás num sítio onde pensas aquilo que define a natureza exata do cinema, o tempo, é maravilhoso.

Agora estou a pensar no teu filme RUBY, e a respiração do tempo. Como espectadora entras numa atmosfera, envolves-te dentro do mesmo plano. E o tempo de descobrir as coisas e detalhes cria um mundo em cada plano.

Absolutamente. Fascina-me muito a vida interior dos planos. A ideia de que a montagem não é só a découpage, apenas a colagem de vários pontos de vista na mesma cena. A montagem, para mim, é uma forma de permitir a cada plano encontrar a sua vida interior. E no seu auge passar para o seguinte. No “Ruby” podia filmar exatamente como eu queria, no sentido de permitir que em cada plano houvesse uma pequena estrutura de tempo onde tu sentes e percebes qualquer coisa do plano, que se move para além da história. Para mim é mesmo um lado emocional relacionado com o tempo, que me deixa envolver. Preciso de tempo, preciso dele para conseguir encontrar aquela vida interior ou descobrir o mistério daquela pessoa naquele sítio. E pude trabalhar isso até certos limites.

Como desenvolveste a personagem feminina neste contexto?

A primeira personagem que eu escrevi no primeiro argumento antes de conhecer todas as pessoas que iriam intervir no filme, era uma personagem feminina mas sempre muito andrógina e entre margens. Para mim, é uma personagem muito mais interessante do que absolutamente definida, até no género. E quando encontrei na altura a “Ruby”, o filme abriu-se e desabrochou. E tudo o que eu procurava fazia sentido. Nessas e noutras questões, o processo de pesquisa permitiu ao filme preencher-se de muito mais do que as minhas intenções. Nesse sentido, foi uma confirmação do que eu tinha escrito, mas uma ampliação imensa de coisas que estavam limitadas por mim, ampliada em mil formas e maneiras.

Dizes que és muito ligada às imagens. O que procuraste através das imagens para dar dimensão ao teu personagem?

Que o filme fosse profundamente rigoroso na sua abordagem formal. No “Ruby” era tudo muito direcionado em torno de criar um contraste de processo com os não-atores. Tinha aqui uma comunidade de não-atores, onde era tudo espontâneo, naturalista, etc.. E todo o meu trabalho e as minhas opções como realizadora eram no sentido de uma certa distância. Em relação especificamente à fotografia, trabalhei com o João Ribeiro, que é um diretor de fotografia absolutamente magnífico. Falamos a mesma língua. Filmamos em 16 milímetros e trabalhámos cada plano, cada emulsão, cada vidro pintado, cada hora de luz escolhida, procurando sempre um traço de hiper-realismo que não fosse absolutamente naturalista.

Procurei que todas as minhas opções nos dessem uma visão do filme com a sensação de um passo atrás, no quadro, na luz, no som (que foi trabalhado numa espécie de grandes planos sonoros dentro dos planos gerais de imagem). Tudo o que nos desse uma espécie de passo de respeito anti-naturalista perante os não-atores que estava a filmar. Porque se não, parecia-me um pouco vampírico ir para cima deles com a câmara na mão. A ideia das escalas é trabalhada para que, quando houver o momento em que a câmara se escolhe aproximar de um rosto, esse rosto tem a mesma dimensão das montanhas que viste até aí. Tudo isto foram escolhas pensadas para que o filme formalmente se defendesse da atração mais fácil do naturalismo.

O peso da maternidade é algo muito forte para as mulheres que trabalham dentro e fora da área Cinema e Audiovisual. Que desafios tu enfrentas, sendo mãe, e como é a tua experiência de trabalho no cinema?  

É uma pergunta muito complexa, e muito menos vezes dirigida aos realizadores homens. Ainda é difícil para mim olhar para trás e construir a narrativa clara do que ser mãe muda, o que não muda. Para mim, em particular, foi extremamente difícil conciliar as diferentes vidas no primeiro ano. Não por falta de paridade na parentalidade, mas porque a estrutura de trabalho em cinema é assente em ritmos, tempos e expectativas que não correspondem nem à maternidade nem, muitas vezes, às vivências mais básicas de ser mulher. Eu lembro-me de falar recentemente com várias mulheres sobre dores menstruais, de dismenorreia e de problemas menstruais que não têm nada a ver com ser mãe. Mas, na prática, são ciclos da nossa vida que muitas temos desde os 12 anos e que isso continua a não ser falado e nem sequer respeitado em ambientes de trabalho. Portanto, ser mãe, para mim, é uma ampliação extrema disso, é uma continuação dessa falta de envolvência e de condições. 

De uma forma se calhar paradoxal, ser mãe afunilou absolutamente as minhas opções, ou seja, tinha agora então que criar de uma forma extremamente urgente, quase como forma de sobrevivência, as condições necessárias a outra vida. O tempo passou a ser único e absolutamente finito. Ao ter que inventar uma nova vida para mim e para ela, comecei a questionar o ciclo de trabalho interminável em que estava há vários anos e o que seria preciso fazer para viver de outra forma. Nesses primeiros meses, fiz sozinha um pequeno filme (“First Light”) com um apoio de um Festival de Cinéma (Festival du Nouveau Cinéma em Montreal), que me permitiu reencontrar uma artesanalidade do cinema que me permitia viver ao ritmo do que estava a descobrir. E isso marcou todo o caminho até ao “Ruby”, ecoando nos meus novos projectos. 

A minha filha nascer tornou óbvio as estruturas de vida que eu queria criar para mim. Portanto, por um lado, criou imensas impossibilidades práticas que eu tive que galgar, como muros que tive de ultrapassar e que ainda hoje são difíceis de conciliar com uma vida em cinema. Por outro, tornou muito evidente o tipo de vida que eu queria criar. Portanto, as duas coisas, uma negativa e uma positiva, foram e são indissociáveis. 

Sentes-te depreciada pela sociedade como mulher e mãe trabalhadora, sobretudo em Portugal?

Eu acho que é transversal à sociedade e acho que é uma intersecção de várias questões. São questões de género, mas também são questões de classe e de várias lutas interseccionais que nós herdamos e que temos que continuar. O cinema continua a ser, em muitos aspetos, um privilégio de classe. Quem é que consegue estar a pesquisar, realizar e terminar um filme durante dois anos? No meu caso tinha montagens alternadas com os tempos em que fazia a pesquisa, para conseguir ter o tempo fora para as minhas criações. Mas se não tivesse isso, que também é um privilégio em si, como é que poderia estar a realizar? Por exemplo, a ficção é objetivamente mais difícil de financiar como mulher do que como homem. Tradicionalmente, tem sido mais acessível financiar longas documentais como autoras do que em longas de ficção. Não necessariamente sempre por apetência, mas por decisão das estruturas de apoio. Portanto, se colocas mais uma camada a isto, seja de mãe trabalhadora que retira não sei quantos dias por semana ao seu trabalho, seja porque os teus pais dependem de ti para sobreviver…  Quanto mais camadas sobrepostas, mais difícil é o acesso à criação.

Em Portugal, as longas metragens de ficção são ainda tradicionalmente associadas a realizadores homens e de um certo privilégio social, apesar de lentamente estarmos a mudar.

Temos que trabalhar estas questões e temos que o fazer sem cair apenas nas armadilhas da tokenização de algumas realizadoras como falsa bandeira de paridade, ou - igualmente perigoso - na tentativa de afunilar identitariamente um “cinema feminino”. Sermos cineastas, em toda a sua multiplicidade temática e formal, é também um direito.

Muitas mães trabalhadoras do cinema são forçadas a desistir porque não há apoio externo. O que gostarias de ver em termos de cuidados infantis e apoio institucional para aliviar os desafios e obstáculos de uma mãe trabalhadora no cinema?

Acho que há um grande trabalho a fazer, como sociedade, para que todas as pessoas envolvidas na maternidade tenham apoio. O que é que queremos, como sociedade, dar de privilégios iniciais a uma criança que está a crescer? Como é que, em sociedade, conseguimos educar, alimentar e criar uma criança? - não devia ser um trabalho solitário. Dentro do cinema, acho que é necessário, acima de tudo, identificarmos as questões em conjunto e propormos soluções práticas aos nossos contextos de trabalho - é o primeiro passo. Seja nesta união da MUTIM, seja nestas conversas. Trazer ao de cima questões que não foram faladas durante décadas e décadas e que são assumidas como normais. Ser mãe não nos devia privar do direito ao trabalho, nem das condições de vida saudáveis para o sermos. Devemos pensar o cinema de uma perspetiva humanista no seu processo.

Sobre todo essa questão da perspectiva humanista, porque existe ainda muita desigualdade de gênero, e não só no cinema…

Há mulheres que regressam ao trabalho quando o bebé tem ainda semanas, ainda a amamentar, não por escolha mas por não terem direito a qualquer outra alternativa. Vivemos em um país onde isto é normal. Nisto, o cinema, para mim, torna-se mesmo na ampliação das estruturas mais negativas da sociedade, porque quando se criam estes momentos de trabalho, como nas rodagens de cinema, tudo é hiperfocado, hiperambicioso, porque é caro. Não há perdão. Não há margem para a vulnerabilidade. Menos ainda que noutros contextos de trabalho.

Enquanto continuarmos a fazer filmes assim, enquanto os nossos modelos de produção repercutirem os modelos de produção da sociedade onde vivemos, que é esmagar aqueles que têm menos, o cinema continuará a ser um contexto de trabalho assente no privilégio de poucos e na exploração dos demais.

Mas é possível fazer de outra maneira, há já tantos exemplos. A nossa ambição devia ser fazer os nossos filmes, entendendo que as pessoas emprestam parte da sua vida para os fazer, e isso é um processo conjunto, um bom conjunto. Portanto, acredito em criar modelos de produção que repercutem nos filmes essa amplitude de “o filme é uma obra autoral”, mas as equipas que o criaram, sejam 5 ou 50 viveram-no. Ou seja, há uma permeabilidade desse processo que tem que ser humanista. Se não for, não me interessa de todo. 

Que tipo de educação feminista estás a dar à tua filha? E o que é que disto se reflecte nos teus filmes?

Fui aprendendo a ensinar, do que herdei também da minha avó e da minha mãe, ambas pessoas monumentais nas suas lutas e percursos, e profundos exemplos de vida para mim. Para a minha filha, entre vários conceitos, tentei criar sempre a ideia da sua própria agência no mundo. Isto é, a forma mais básica que consigo pôr a resposta, porque depois isso repercute-se todos os dias, em todas as ações, em todas as formas como tu dás o exemplo, como vives. Por exemplo, quando ela era pequena, começou a ver filmes lentamente. E desde que tivemos a possibilidade de ter um diálogo um bocadinho mais complexo, ensinei-lhe o que era o bechdel test. Tornou-se um jogo. Ela via e percebia que num filme com uma protagonista, esta nunca ou quase nunca falava a sós com outras personagens femininas, e quando o fazia, era quase sempre sobre uma personagem masculina ausente. Ela ficou muito chocada ao início, com cinco anos:

Mas mãe nem este filme?”, “Não, nem A PEQUENA SEREIA passa o bechdel test”.

Vimos a mesma coisa noutros filmes de crianças e naqueles com que eu cresci, como filmes do Chaplin e do Tati, que eu admiro e que respeito e que me influenciaram para toda a vida, mas que eram obras criadas por homens, faladas por homens e narradas por homens. E ela diz-me: “Mas porquê?”, e eu digo: “A minha geração e depois a tua geração, vamos conseguir criar narrativas, seja no cinema, seja no nosso trabalho, seja noutras coisas que dêem voz à nossa perspetiva”.

Ela percebe que está rodeada de narrativas que pode gostar e admirar, mas que pode também observar de forma crítica. E acho que isso despoleta uma data de questões à medida que ela vai crescendo sobre a hegemonia de uma perspetiva em vez de outra, sobre a forma as múltiplas desigualdades - não apenas de género - que permeiam a nossa sociedade. Em relação a como é que isso se reflete no meu trabalho? Que aquelas vozes que eu escolho como centro do quadro sejam vozes de uma qualquer resistência anti-hegemónica que possa ser trazida ao de cima, que de outra forma não seria. E, nesse sentido, posso fazer filmes a partir de uma perspectiva feminina, mas também de outras mil resistências.

Com certeza há uma influência grande da tua filha em como tu pensas os teus filmes... 

Há. O “Ruby” foi em parte um filme que eu comecei a escrever quando pensei no que a minha filha iria achar se eu optasse por viver exterior ao sistema comum, como na altura ponderei fazer, na Serra de Góis, junto da comunidade que conhecia. O que iria ela julgar dessa minha escolha quando tivesse 15 anos, crescer ali, crescer longe, não crescendo na cidade, não crescer ao pé do resto da família, mas de crescer com outros mundos. Os conflitos que surgiriam. O “Ruby” começou por ser o que ela vai achar da minha decisão como mãe. Portanto, eu não era já a personagem de 15 anos, a punk com quem sempre me identifiquei, eu era a personagem dos pais fora do quadro, cujas opções tinham repercussões na personagem principal. A minha filha trouxe uma imensa complexidade à minha forma de ver o mundo.

O que desejarias no que diz respeito à igualdade de género na nossa área profissional? Que condições poderiam ser melhoradas para as mulheres e dissidentes?

Falta tanta coisa. Faltam estruturas de trabalho que contemplem as necessidades específicas de, por exemplo, ser mulher. Como faltam muitas condições de trabalho transversalmente, em qualquer contexto laboral na nossa sociedade. Por outro lado, falta uma paridade lógica nas oportunidades. E se isto nos parece incompatível, então acho que temos que falar muito mais, conversar muito mais e tentar trabalhar conjuntamente para percebermos o que é que estas duas opções querem dizer e como é que são absolutamente compatíveis. Em relação especificamente ao cinema, falta por exemplo uma igualdade de oportunidades no acesso ao financiamento. Um pensamento profundo sobre isso. Não apenas dizer “falta”, mas construir um espírito crítico conjunto. Perceber porquê e depois trabalhar as várias questões, como as condições laborais, a paridade e o acesso à própria autoria.

Ainda hoje o cinema em muitos casos é muito estereotipado. Embora existam alguns lugares para narrativas feministas, dissidentes, progressistas, quem está em posição de decidir se um filme se produz, se tem financiamento ou não, prefere escolher, em muitos casos, outros caminhos. Numa visão feminista, em que direção está a evoluir o mundo profissional do cinema e audiovisual? 

É complexo. As estruturas de poder e de escolha ainda herdam de uma misoginia tradicional, no sentido de avaliar a capacidade de uma mulher de uma maneira diferente da capacidade de um homem. Mas eu acredito mesmo na nossa capacidade de trabalhar em conjunto, em identificar as questões e em discutir formas de avançar. Tenho sentido que há uma evolução nas estruturas de trabalho, nas equipas e que tem havido uma evolução na dignidade com que se pensa no trabalho das pessoas que vamos trazer para os nossos projetos. A dignidade no trabalho não devia ser um privilégio de classe e não devia ser um privilégio de posição na hierarquia laboral, seja no cinema ou fora. A dignidade devia ser um direito inerente a qualquer pessoa que ponha os pés no trabalho.

Neste contexto também podemos falar sobre o sexismo e o assédio no cinema. Alguma vez sofreste alguma discriminação ou violência de género?

Lembro-me das primeiras equipas onde trabalhei. Isso foi no início da escola de cinema, portanto há mais de 15 anos. Nestas primeiras equipas, muito mais velhas, havia definitivamente uma estrutura extremamente misógina, classista, autoritária e de agressividade diária, de constantes comentários e gestos. Era literalmente o pior que podias encontrar, um power play constante. Toda a gente era uma grande besta e tu tornavas-te numa besta também. Aquilo desinteressou-me profundamente e mudei para a montagem como forma de proteção. Ainda hoje há os ecos de uma hierarquia violenta. Mas, nas equipas onde trabalho agora, é bastante diferente e tem sido trabalhado e verbalizado coisas que nos parecem básicas, que é um grande alívio ver que foram mudando. Mas claro, sempre que há poder, há a possibilidade de abuso desse poder. O assédio sexual tem sido um legado de sempre dessas estruturas de poder, desse exercício de poder sobre o próximo.

E achas que faz falta uma espécie de manual da educação sexual? Nós sabemos como ter uma conduta boa e não, mas muitas pessoas, ainda ligadas às estruturas antigas, nem sequer têm acesso a esse conhecimento.

Eu acho que o nosso trabalho está inerentemente ligado ao trabalho que temos que fazer como sociedade para trazer estas questões ao de cima, desconstruí-las no que for possível e em tudo o que não for possível desconstruir, legislar. Isso aplica-se tanto a uma rodagem como a uma montagem, mas essencialmente, aplica-se à nossa vida em sociedade. Eu acredito sempre em não pensar o cinema como um microclima, mas como algo envolvido numa sociedade abrangente, onde nós mesmos também somos cidadãos e onde temos que intervir ativamente para criar exatamente tudo que estamos a falar para o cinema. Mais condições para mães que são trabalhadoras, mais condições para mulheres, mais condições para todo o trabalho, tal como mais condições para se entender e se erradicar o que é assédio sexual.

Tenho muita fé na geração nova. Mas, ao mesmo tempo vemos um progresso terrível, que se prolonga há já algum tempo.

Totalmente. Eu tenho absoluta fé no futuro, em quem vai ler mais do que nós, em quem vai continuar a luta. Mas também estou muito consciente que há aqui uma grande cisão, ampliada pela forma como vivemos, desligados uns dos outros, que está exatamente no oposto que nós estamos a falar. Está no oposto dos direitos das mulheres, está no oposto dos direitos básicos, está no oposto da dignidade, está no oposto das condições laborais.

Não há nenhuma linearidade nisto e em muito pouco tempo podemos retroceder. Portanto, tenho fé na força da juventude, mas acho que temos que trabalhar muito conjuntamente. Temos que pensar muito sobre o que está a acontecer e agir agora. Se não, tudo o que achamos que são direitos inerentes, para além daqueles que achamos que faltam, vão desaparecer em dez anos.

Há alguma mulher ou dissidente que te inspiras profissionalmente?

Muitas. No cinema contemporâneo, a Kelly Reichardt. Ela é uma referência muito profunda, em muitos níveis. A Chantal Akerman, por razões também subterrâneas e misteriosas. Não sempre paralelas ou óbvias. A Lucrécia Martel. O mistério das pessoas e dos corpos nos planos. Esta ideia de vida interior fascina-me muito. Há muitas mais dentro do cinema, fora do cinema, e principalmente na música, onde tenho milhares de referências diretas para o que eu faço, mais do que as vindas do próprio cinema. Vozes que sempre inflamam uma resistência qualquer. Kim Gordon, Patti Smith, Sister Rosetta Tharpe, entre tantas outras.

Que mensagem deixarias às companheiras do cinema e audiovisual?

Falemos. Trabalhemos para criar um mundo mais digno para o nosso trabalho, aquilo que todas queremos fazer.



A autora é nossa associada: Kathrin Frank 

LEONOR TELES - ENTREVISTA

Nome: Leonor Teles

Idade: 30

Profissão: Directora de Fotografia e Realizadora

As tuas duas últimas obras: Direcção de Fotografia – Mal Viver (João Canijo), By Flávio (Pedro Cabeleira) e Azul (Ágata de Pinho)

Realização -  Cães que Ladram aos Pássaros e Terra Franca

Onde e em que função trabalhas e qual é a tua situação profissional actual?

Trabalho sobretudo como directora de fotografia e realizadora. Faço diversos tipos de trabalho não só em cinema, mas também em televisão e publicidade, como freelancer.

Numa visão feminista, em que direcção está a evoluir o mundo profissional do Cinema e Audiovisual? 

Não tenho uma resposta clara para esta pergunta, quero acreditar que está evoluir para um caminho melhor.

Achas que houve mudanças positivas nas questões de igualdade de género, diversidade e equidade no Cinema e Audiovisual? Em caso afirmativo, quais?

Acho que o caminho ainda é longo. Posições de chefia ainda são maioritariamente ocupadas por homens, é uma luta diária e constante para tentar equilibrar a balança. Acho que um factor positivo é o facto de pessoas cada mais vez jovens e de classes sociais menos privilegiadas terem acesso à educação na área e consequentemente poderem filmar e partilhar as suas ideias. E pertencendo a outra geração, têm também uma mentalidade e sensibilidade diferentes para este tipo de questões.

Há alguma mulher/dissidente que te inspiras profissionalmente?

Lucrécia Martel sem dúvida, Claire Denis, Céline Sciamma, Andrea Arnold (realizadoras). Hélène Louvart ou Claire Mathon, como directoras de fotografia, e todas aquelas que se arriscam a pegar na câmara.

Como cineasta, como trabalhas os aspectos de intimidade (intimidade feminina) nos teus filmes? 

Acho que tem a ver com as relações que crio com as pessoas que filmo, sem elas essa intimidade nunca seria possível. Porque o nosso trabalho está na assente na confiança e na compreensão do que se está a tentar transmitir. Aliás, os meus filmes nascem precisamente da relação com as pessoas filmadas. A intimidade vem também do espaço que se cria para que as pessoas/personagens possam trabalhar, explorar, criar, dar-lhes confiança no que são e como fazer com que isso seja visível através da câmara. Vem também de um lugar de admiração, de encantamento, de paixão, de querer filmar aquela pessoa, de “elevá-la” ao grande ecrã. De ter a certeza que deste encontro vai surgir um filme. E, obviamente de amizade, porque no fim do filme as pessoas continuam amigas e isso é incrível.

O cinema dá cada vez mais espaço às mulheres para narrar novas perspectivas feministas e procurar sair do estereótipo. Como diretora de fotografia, que perspectiva/forma desejas contar visualmente?

Eu, como directora de fotografia, estou a concretizar a ideia de uma outra pessoa, estou a ajudá-la a conceber a sua visão do filme, qual a melhor forma de compor as imagens para contar determinada narrativa. Obviamente que tento sempre dar o meu contributo, no que diz respeito a tentar cortar com os estereótipo. Por exemplo, tento ao máximo não objectificar ainda mais os corpos femininos, tento explicar aos realizadores que filmar de maneira X faz com se perpetue uma determinada ideia depreciativa, e que podemos filmar de uma outra forma, provavelmente muito mais interessante e respeitosa para com as personagens e as pessoas. É um processo de muito diálogo, trabalho e discussão. Mas se fosse fácil, o problema já estaria resolvido.

Acho que devemos tentar ter mais personagens disruptivas, dissidentes, não normativas no ecrã e partilhar as suas histórias. 

Pessoalmente, acho que devemos tentar ter mais personagens disruptivas, dissidentes, não normativas no ecrã e partilhar as suas histórias, fazer com que sejam também ouvidas e vistas. Fazer com que existam mais oportunidades para que isso aconteça, criar esse espaço.

Os teus documentários têm como tema a comunidade cigana e a família. As protagonistas femininas nos teus documentários, como as descreverias? E qual é a tua relação com a comunidade?

Descrevo-as como incríveis, todas elas. Acho que têm um papel fundamental no seio da família e da comunidade a que pertencem. São uma força motora da qual o resto dos elementos dependem. São uma inspiração para mim.

A autora é nossa associada: Kathrin Frank 

JOANA FERREIRA - ENTREVISTA

Nome: Joana Ferreira

Idade: 48 anos

Profissão: Produtora de Cinema

Os teus dois últimos trabalhos: “Yoon” de Pedro Figueiredo Neto e Ricardo Falcão e “O Vento Assobiando nas Gruas” de Jeanne Waltz.

Onde e em que função trabalhas? E qual é a tua situação profissional atual?

Depois de dezesseis anos na CRIM Productions, onde produzi mais de quarenta filmes, e partilhava a produção e a linha editorial dos projectos; decidi criar a sopro filmes onde poderei produzir de forma autónoma, mais criteriosa, mais livre e de forma mais inclusiva. 

Neste momento encontro-me em preparação de duas longas-metragens documentais que se irão realizar no final deste ano, e que serão ambas realizadas por mulheres. Estou ainda a aguardar resultados do ICA com alguns projectos de ficção e de documentário, e a trabalhar em conjunto com a RTP em novos  projectos.

Achas que é um desafio uma mulher ser produtora de cinema? E na tua visão, as estruturas existentes precisam de ser alteradas para que mais mulheres possam produzir?  

Apesar de toda a luta histórica, as mulheres ainda são uma minoria nos cargos de poder, na política e em diversos sectores, como é o caso do cinema. É, infelizmente, uma realidade transversal a quase todas as áreas da nossa sociedade. Historicamente o cinema é dominado prioritariamente por homens, brancos, heterossexuais.

Habitualmente os sectores da realização, produção, direcção de fotografia entre outros, são maioritariamente cargos masculinos. 

Acho que, mais que um problema das estruturas existentes, é um problema de mentalidades e da cultura machista e patriarcal, que impossibilita esta mudança e que reforça a má prática das estruturas existentes.

Apesar de tudo, nestes últimos anos, existiu uma melhoria, mesmo que aparente, na representação feminina no cinema. Contudo, acredito que ainda não ultrapassamos a cultura machista e patriarcal.  Acredito sim, que o capitalismo e o consumo excessivo a todos os níveis, absorveu esta consciencialização política e aproveitou-a como estratégia de mercado. Acho que ainda estamos muito longe de uma igualdade de direitos.

Num cinema dominado, maioritariamente, por homens, com ideologias tipicamente masculinas, o facto de poucas mulheres obterem financiamento para filmes de ficção é ainda uma realidade. Como produtora, que estratégias pensas que deveriam existir para aumentar a visibilidade das realizadoras no mundo do cinema? Mesmo levando em conta o apoio financeiro do ICA - Instituto do Cinema e Audiovisual.

A história do cinema português realizado por mulheres arranca verdadeiramente depois do fim do Estado Novo. E ainda assim, continuamos a assistir a tristes exemplos,  como é o caso do belíssimo filme "O Movimento das Coisas", da realizadora portuguesa Manuela Serra, que teve a sua estreia, mais de trinta anos depois de ter sido filmado. 

Olhando para o futuro, será essencial que mais mulheres filmem. Só assim poderá surgir uma sociedade mais aberta e inclusiva, verdadeiramente representativa e com  mudanças reais.

Como produtora, são os projectos que me aliciam e me movem,  mas é verdade que a minha vida profissional me tem levado de forma muito natural, a trabalhar mais com mulheres. 

O Instituto do Cinema e Audiovisual tem desde há alguns anos no Apoio ao Cinema: no Subprograma de Apoio à Escrita e ao Desenvolvimento de Obras Cinematográficas e no Subprograma de Apoio à Escrita e ao Desenvolvimento de Obras Audiovisuais e Multimédia. uma majoração de 10% do apoio, a atribuir por plano, quando se verifique mais de 50% de autoria por mulheres em relação ao total de autores do plano. Parece-me um apoio insuficiente e que está longe de servir e dar visibilidade a todas as mulheres trabalhadoras do Cinema e Audiovisual. Gostaria que estes critérios de majoração fossem aplicados a todos os concursos, de forma a tornar possível a igualdade pela qual tanto ambicionamos.

O que é importante na construção das personagens femininas nas histórias que produzes? E como produtora, o que gostarias de ver mais no cinema português, tendo em mente a diversidade?

Acredito na importância de construir personagens femininas reais que falem sobre a experiência vivida pelas mulheres na sociedade, incluindo a opressão social, sexual e as lutas pessoais e coletivas em busca de igualdade.

Achas que houve mudanças positivas nas questões de igualdade de género, diversidade e equidade no Cinema e Audiovisual? Em caso afirmativo, quais?

Os vários sectores do cinema estão mais esbatidos em termos de género. Há  mais mulheres em áreas tradicionalmente masculinas (por exemplo, imagem e som ) e há   mais homens em áreas tradicionalmente consideradas femininas (guarda-roupa, cabelos, maquilhagem).

A violência e o assédio sexual da mulher no mundo do cinema é um assunto que precisa ser discutido. Na tua opinião, de que forma os produtores cinematográficos poderiam contribuir para prevenir e diminuir o assédio e a violência contra as mulheres na indústria cinematográfica?

Em 2017 o movimento “Me too” mostrou ao mundo, sobretudo na voz de algumas  actrizes americanas, as suas experiências com o abuso sexual e o assédio, particularmente nos mais altos cargos. A misoginia e o assédio estão intimamente ligados ao abuso de poder que o cinema insiste em perpetuar. Não tenho nenhuma solução à vista, mas acredito que todas as minhas produções refletem de forma construtiva, o cinema de uma forma mais inclusiva, mais representativa e mais igualitária. Enquanto produtora, o meu papel é não fechar os olhos a qualquer indício de má conduta e agir imediatamente. 

Qual a mensagem deixarias às mulheres do Cinema e Audiovisual?

Ação! 

A autora é nossa associada: Kathrin Frank 

MANUELA SERRA - ENTREVISTA

Nome: Manuela Serra

Idade: 74

Profissão: Realizadora 

As tua obras mais significativa da carreira profissional: O Movimento das Coisas

Como começou a tua vida no cinema?

Regressei de Bruxelas, onde vivi durante três anos. Estudei cinema numa escola de artes. Depois regressei a Portugal em 74, depois do 25 de Abril. E entrei logo em contacto com as pessoas do cinema que também estavam e tinham vivido em Bruxelas. Conheci várias pessoas ligadas ao cinema. Eles estavam a fazer uma cobertura dos acontecimentos e eu comecei a trabalhar na montagem. Trabalhei em montagem durante um período longo. Foi assim no início do cinema.

Qual é a tua situação profissional actual? 

Sorrindo. Já tenho 74 anos. Estou em casa reformada, não tenho atividade. O que eu fiz agora é ir a alguns festivais, acompanhar o meu filme “O movimento das coisas”. Esta é minha atividade no cinema. Mas não estou ligada de outra forma ao mundo do cinema. Só desta forma. Fiz parte do júri no Doc Lisboa, por exemplo, mas foi uma coisa pontual. Já estou desligada do meio já há muitos anos. 

Tu és feminista? E que o entendes por isso?

Depende do sentido que dermos à palavra. Porque feminismo já há muito. E passa-se uma coisa que me preocupa muito: as mulheres entram para a política e começam a agir como os homens, em vez de defenderem aquilo que é feminino. Isso é um risco. É um risco que existe em alguns movimentos. Mas gostaria que as mulheres se unissem mais. Não vejo outra solução. As mulheres poderiam discutir mais umas com as outras. Sem dúvida. 

O Movimento das Coisas é um filme que retrata maioritariamente as mulheres rurais, trabalhadoras, criadoras, -  a tua ideia inicial era chamar o filme“Mulheres”. O que te interessava retratar nas mulheres?  

Quando pensei nas mulheres e fazer um trabalho sobre elas, inicialmente minha ideia foi uma coisa mais coletiva e mais generalizada, mais focada nas desigualdades e focar nesse problema. Depois compreendi que isso era demasiado complexo. Além disso, as mulheres não se entendiam muito entre elas e eu não acredito que se construa nada em competição, tem que ser com cooperação e não competição. E eu não consegui isso. O que me fez logo trabalhar em “O Movimento das Coisas”. Neste filme, a minha ideia era mostrar as mulheres, em vez de ter um discurso. Em vez de falar sobre as mulheres, optei por mostrá-las. E depois escolhi o Minho para filmar. Porque quem conhece Portugal um pouco, sabe que é a região onde a mulher na época estava mais afirmada, porque houve uma quase massiva emigração dos homens do Minho. Foram para França, Canadá e outros países da Europa para procurar trabalho. E as mulheres ficaram sozinhas e tiveram que se agarrar ao trabalho do campo e elas faziam tudo. Quando os homens regressaram naturalmente cumpriam um papel mais passivo, porque elas já tinham tomado praticamente conta de todo o trabalho e demais. Então esta parte pareceu-me mais interessante em mostrar as mulheres. 

Sinto uma grande sensibilidade no teu olhar de ver e retratar as mulheres. O que me fascinou foi que em todas as ações pequenas, incluindo o que as mulheres faziam nas suas tarefas e trabalho diário, parecia haver uma beleza, é algo quase sagrado, muito natural e feminino das mulheres. Era a tua intenção de retratar as mulheres com estas acções quotidianas, muitas vezes pequenas? 

Sim. São belas as mulheres no seus trabalhos. São muito belas. Claro que procurei torná-las ainda mais belas, talvez a sobressair beleza. Foi uma preocupação da minha parte. Porque acredito que o belo e o bom estão ligados. É uma maneira de as enaltecer, é uma forma de mostrar, porque é uma verdade que elas são assim. Elas não fingiram. Não quer dizer que quando uma pessoa esteja cansada, que seus gestos não sejam tão belos. Gosto do prazer de utilizar as mãos e o corpo no trabalho. O prazer do gesto. Faziam com gosto, não havia sacrifício. Se custasse, faziam-no com gosto. Esse eu acho que se perdeu um pouco da nossa sociedade. Faz-se tudo à pressa e sob pressão, portanto, não podemos usufruir do que fazemos e está sempre tudo a correr. Não há prazer, é um bocado esse contraste, quis acentuar isso.

Estiveste muito envolvida em todos os processos, como a edição, a produção, pós-produção e a direção. Era mais por necesidade que por vontade própria. Numa entrevista disseste que o cinema foi misógino e que houve pessoas ligadas ao poder que te impediram de seguir. Podes explicar um pouco mais?

Tinha uma equipe a distribuir. Tocava em tudo e às vezes não tinha quem fizesse e faria eu mesmo, como a sonoplastia. Porque a montadora regressou a Bruxelas, portanto, no final tive que fazê-lo porque a cooperativa desfez-se. 

Por quê? Eu li numa entrevista, que o meio cinematográfico era profundamente machista e misógino… 

Eu tive problemas. O filme causou impacto dentro da cooperativa e houve quem não gostasse. E de tal ponto que tentou que eu não conseguisse acabar o filme. Eu fui alvo de muitas ações da parte do líder, digamos, da cooperativa. Desde me bater, a roubar dinheiro, acusando-me que eu tinha conseguido dinheiro no Instituto Português de Cinema, e eu nunca ouvi nem sabia desse dinheiro. Portanto, tive problemas de produção para continuar a receber as prestações do Instituto Português de Cinema porque aquele indivíduo me acusou de ter gasto um dinheiro que eu nunca tive nem sabia. Portanto, ele fez imensas ações para eu não acabar o filme, inclusivamente com o dinheiro que conseguiu captar do instituto, ele aliciou os outros elementos da cooperativa a acabar com a cooperativa e irem fazer um trabalho com ele, com este dinheiro. Eu tenho que dizer que houve uma reação da parte dos homens muito negativa para mim, tentando abafar o que eu não terminasse o filme. Mais tarde, depois, eu consegui fazer o filme e o filme teve impacto no estrangeiro, em festivais. Aqui em Portugal foi ignorado pelos mais poderosos. Foi ignorado. Não me abriram nunca nenhuma porta para eu continuar.

Achas que os problemas que confrontavas, eram por seres mulher também?

Com certeza. Se fosse um homem…  Os homens protegem-se a eles e sabem que se há um homem que vinga, fica com uma roda de outros homens que o apoiam… E com as mulheres não. Não tenho dúvidas. Não permitiam que mulher nenhuma se distinguisse. Isto não, não era possível nada.

Mas tu percebes que as coisas já mudaram? E qual mudanças positivas tu sentes existem para as mulheres hoje em dia?

Pelo que vejo, de facto há mais mulheres [no cinema]. Isso é inegável. Sem dúvida que as mulheres têm mais acesso hoje e muitas vezes até que por conveniência abrem as portas às mulheres. É uma questão que é social e que é bem visto pela sociedade. Mas continua na mão dos homens. Não só o cinema, mas o mundo todo. O mundo é dos homens, não é nosso. Nunca nenhuma mulher se lembraria de invadir outro país. São homens. As mulheres têm um peso muito pequeno nas decisões da sociedade e consequentemente no meio do cinema é a mesma coisa. Continua ser dos homens. É suspeito que aqui em Portugal nunca será facilitado um trabalho mais profundo feito por mulheres. Coisas mais pontuais, temáticas, isso sim. Mas nunca um trabalho assim do fundo. Não acredito que as mulheres consigam fazer isto aqui em Portugal. Até porque, politicamente, é conveniente que assim seja. 

Criarmos a MUTIM é um ponto de partida para mudar as coisas. Muitas mulheres que se juntam e estão a lutar por algo melhor. A nossa intenção acreditar que podemos mudar alguma coisa no cinema e audiovisual  e também aumentar um pouco mais a visibilidade das mulheres.

É muito interessante e louvável. E eu estou contente, e muito feliz. Não há muito em Portugal, esta tradição de mulheres se unirem. Fico contente. 

Tiveste que esperar quase 35 anos para poder lançar teu filme comercialmente…

Sim, 40 anos, acho. 

E achavas que seria possível em algum momento ou já não acreditavas que ía acontecer?

Não, já não pensava. Quase que me tinha esquecido que tinha feito um filme (sorrindo). Que não entrava na minha vida, era uma coisa que os meus amigos ouviam falar, que eu tinha feito um filme, mas não tinham a dimensão do que é que eu tinha feito. Fui privada de usar esse facto e de ter feito aquele trabalho como se não tivesse feito nada. Ora, isso é destrutivo. Se a sociedade não te reconhece, começa a ficar muito desconfiada da sociedade em que estás inserida. Precisava desta. E pronto, fiquei de fora. Foi isso. Mas estarmos fora faz-nos muito críticas em relação ao que se passa nesta cidade. 

Foste fundadora de uma cooperativa artística. Acreditas ainda hoje no funcionamento das cooperativas? Achas que podem ser uma boa ferramenta para o cinema?

Eu acredito. Mas é importante que as pessoas no início formalizem o motivo por que querem ir para uma cooperativa. Quando se começa há o entusiasmo. E tudo bem. Mas as pessoas não definiram porque é que querem a cooperativa. Porque se quando há problemas, tem que se ir procurar a definição que foi feita no início. A experiência que tive começou a degenerar, cada um olhava para os seus interesses em vez de se manter o sistema cooperativo. Portanto é necessário que sejam definidos os objetivos, que as pessoas os definam. Cada um escreve o que se pretende da cooperativa para ser confrontado caso os seus interesses se comecem a desviar do que foi no início. Mas o sistema cooperativo é dos mais interessantes. É a própria palavra o que diz: cooperar e não competir. 

O que aconselharias as mulheres companheiras de cinema atual?

Que sonhem umas com as outras, porque é a única maneira de sermos mais fortes, de fazermos frente aos prejuízos e privilégios masculinos. Sobretudo, se não nos unirmos, não saímos do sistema comparativo. Esta sociedade está sempre em tornos de que a mais bonita, da outra que tem isto, tem o carro e tem o vestido. Tem de sair deste caldo imposto pela sociedade. Portanto é isso que posso dizer às mulheres, é que se unam e discutam….  Eu tenho que agradecer às mulheres todas que me têm apoiado nesta segunda vida d’O Movimento das Coisas. 

“Eu tenho que agradecer às mulheres todas que me têm apoiado nesta segunda vida d’O Movimento das Coisas. “

Depois do lançamento comercial do teu filme, sentiste que ele te trouxe paz e reconhecimento?

Estou muito satisfeita e até comovida pelo que se tem passado, agora que as pessoas o viram. O filme tem sido muito solicitado, tem passado no país todo, nos cineclubes. Ainda não parou. Desde há um ano que está sempre a passar, até a festivais no estrangeiro tem ido. O público e as pessoas, mesmo aqui em Portugal, têm sido muito afetuosas para mim. Eu tenho tido o contrário do que tive há 30 anos. As pessoas são todas muito acolhedoras, tratam-me muito bem, são muito simpáticas. É exatamente o contrário do que foi no passado. 

Sim, compreendo isso. Certamente que teria sido melhor ter a estreia há 40 anos. Notei algo de intemporalidade no teu filme. Sinto que de certa forma é muito atual e que existem muitos temas atuais e universais.

Sim. É verdade. Quanto a mim, tem um problema ainda mais urgente resolver e as mulheres deviam pegar muito nisso, que é as alterações climáticas a travar este desenvolvimento voraz, esta exploração das pessoas e do planeta. Acho que estamos num processo de autodestruição. 

Também a nossa perda com as tradições e a nossa conexão com a natureza.

Tudo já é destruição e a infelicidade. O ser humano tem que estar na natureza. Esse bulício da cidade impede-nos de sentir a vida. Estamos sempre com barulho e música e os automóveis. O ser humano necessita da natureza para se encontrar e encontrar verdades. Não é no meio desse barulho, desta confusão, desta pressão. Eu acho que isto é destrutivo e há quem ganhe com isso. O silêncio da mulher é sempre uma coisa que eu acho curiosa, é que em Portugal nunca se fala. Deixaram de falar daquela jovem. Acho que era sueca, Greta. Nunca mais se falou em ela.

Há uma frase tua que li e que gostei muito: “Temos que nos entender pela sensibilidade!” O que queres dizer com isto?

Sorrindo. Nós já não temos capacidade de nos ouvirmos uns aos outros. É como se tivéssemos perdido a capacidade de escutar. Não ouvimos. Não damos atenção ao sentido do ouvido. Os franceses dizem ouvir e sentir, o sentido do ouvido. O que nos faz a ligação, que nos dá disponibilidade. Se formos capazes de ouvir os outros com toda a atenção, ficamos mais sabedores dos outros e de nós e da sociedade em geral. 

(Há alguma coisa que tu gostasses de dizer agora? Estás à vontade para contar algo mais, algo que queiras transmitir.)

Apesar de tudo, foi muito bom para mim esta nova vida d’O Movimento das Coisas. Pouco a pouco também me senti mais forte. Eu tenho que agradecer a quem contribuiu, têm sido muitas pessoas a fazer que isto aconteça. 

Tu vês cinema, vais ao cinema?

Muito pouco, tenho uma vida muito isolada. Durante muitos anos evitava e não queria. Desgostava-me. Interessei-me mais pela música, pelas artes plásticas. Magoava-me ver cinema, e depois ficou um hábito. Mas se alguma amiga me desafia, eu vou. Mas perdi a iniciativa de ir.

A autora é nossa associada: Kathrin Frank 

JOANA NIZA BRAGA - ENTREVISTA

Nome: Joana Niza Braga

Idade: 30

Profissão: Editora e Misturadora de Som para Cinema e TV

As duas obras mais significativas da carreira profissional: Balada de um Batráquio e Free Solo

Onde e em que função trabalhas e qual é a tua situação profissional actual? 

Desde 2016 que faço parte do departamento de Som do centro de pós-produção Loudness Films em Lisboa. Durante estes anos tenho tido a oportunidade de trabalhar em inúmeros projectos nacionais e internacionais nas mais variadas funções que vão desde a edição de diálogos e/ou ambientes e efeitos para cinema e TV; à gravação, edição e mistura de foleys e ADR; ou até mistura de som. Basicamente a minha função no estúdio está sempre a alterar-se, mas acho que no fim, gosto de me identificar como editora ou designer de som.

Como definirias o teu trabalho e estilo como desenhadora de som?

Bom, para mim o Som é um dos elementos fundamentais a ter em conta quando queremos atingir o espectador a um nível emocional, psicológico e até físico (por vibrações). Por vezes, é bastante negligenciado, em parte por ignorância e acho que é nosso dever tentar transmitir o potencial que existe neste mundo do Som.

Ao adicionar layers compostas por música, diálogos, efeitos e ambientes, estamos a criar uma experiência mais imersiva e realista. Com o Som conseguimos ajudar o storyteller a conduzir a sua narrativa, a estabelecer o mood de cada cena, e, por sua vez, provocar uma resposta emocional no espectador. Falo duma emoção real ao que assiste. “Hearing is Believing” e o som tem a capacidade de convencer a nossa mente de que, durante alguns momentos, estamos num outro lugar que não corresponde à nossa realidade. 

Quando entro num projecto, passo sempre por uma fase de estudo e adaptação inicial. Gosto de conhecer a obra de cada um e o próprio indivíduo por detrás do projecto; as suas influências e referências a seguir; o modo como trabalha e, acima de tudo, qual a história que quer contar e o motivo que o move. Gosto de conseguir ter uma leitura o mais fidedigna possível sobre o projecto e a pessoa por detrás do mesmo, de modo a conseguir contribuir da maneira mais honesta. O Cinema é uma Mentira, mas é muito fácil cair numa Falsidade. É nosso dever, como colectivo, prevenir isso mesmo.

“Para mim, o mais importante é isso mesmo:  a história, a intenção, a motivação.”

O modo como o sound design é conduzindo difere também de projecto para projecto. Muitas vezes é-nos dito o que fazer, bit by bit, cue by cue, mas muitas são as vezes em recebemos uma espécie de carta-branca dos realizadores. São nestes projectos que encontramos mais espaço para sermos criativos, o que torna o trabalho muito mais divertido, mas também arriscado. Seja qual for a situação em que me encontro, procuro sempre criar um desenho de som que seja dinâmico. Gosto de dar atenção a pequenos detalhes e pormenores; procuro silêncios, mas também momentos que peçam por mais ousadia, ruído, peso, força. É como uma dança entre dois pólos, aparentemente diferentes e distantes, que juntos encontram uma verdadeira harmonia. Simplesmente resultam numa perfeita sinergia. 

Being that said, já recebi reviews de pessoas que dizem que o estilo do meu trabalho é muito agressivo, técnico e arriscado, mais para o hollywoodesco; ora recebi outras que o definiam como sutil, delicado, natural e realista. Na verdade, cada projecto é um projecto e eu tento sempre adaptar-me ao que o projecto pede, de modo a conseguir elevá-lo. Acho que é isso. 

Sentes por vezes que tens de lutar pelo reconhecimento como desenhadora de som?

Sim. Especialmente no início da minha carreira, onde sempre senti que existia uma dificuldade em ser levada a sério, em parte por ser jovem, mas também por ser uma mulher num meio claramente dominado por homens. Muitas foram as vezes em que fui intitulada de “a miúda do Som”. Por vezes, ainda acontece. Isto levou-me a trabalhar dez vezes mais que vários colegas, à procura de alguma credibilidade no meio. Tive também que, como muitas mulheres, fechar os olhos a muitas situações que qualquer uma de nós consideraria serem injustas, desagradáveis e até traumáticas, pois as repercussões que viriam duma retaliação pareciam, na altura e em curto prazo, piores.

Muitas foram as vezes em que dei por mim a ser a única mulher no estúdio a tentar validar a minha voz e receber o reconhecimento, valorização e respeito merecidos pelo meu trabalho e por mim mesma… Muitas vezes sem sucesso. Colocando a minha carreira em perspetiva, denoto o quão rara foi a ascensão rápida que tive. Muito rara mesmo. Hoje encontro-me numa posição um pouco diferente, e tenho visto cada vez mais mulheres a aparecer nesta área, mas infelizmente, o mundo do Som, seja em Portugal ou lá fora, ainda continua a ser um boys club.. um white boys club (como tantos outros).

Estudos recentes mostram que existe uma percentagem preocupantemente baixa de compositoras e desenhadoras de som. Porque pensas que isso acontece?

Acho que o grande problema não é que não haja suficientes mulheres qualificadas na área. O problema é que designers que se identificam como mulheres não recebem tantas oportunidades como deveriam. Imagine-se, olhando para créditos atrás de créditos, denoto que regra geral, se existir uma mulher na equipa de som, esta é a Editora de Diálogos, uma das áreas que infelizmente é considerada mais “técnica” apesar de não o ser. De todo!!! As restantes funções mais “criativas” ou “artísticas”, como edição de efeitos, sound design, música, supervisão e mistura são entregues aos nossos pares masculinos. Falo por mim, que muitas vezes tenho que lutar para conseguir obter esse tipo de funções. Dá que pensar... Em parte, creio que o problema reside no facto de realizadores e produtores procurarem os mesmos editores e designers que sempre procuraram antes, em vez de procurarem novos talentos e dar oportunidades a novas caras, cuja sensibilidade será, certamente, diferente. 

Acho que é importante perceber que a única maneira de uma forma de arte permanecer relevante é quando ela é criada pela próxima geração. Se a forma de arte continuar a ser criada apenas pela geração “mais velha”, simplesmente estagnará. E infelizmente já vejo muitos editores e designers jovens a seguir exatamente os mesmos passos da geração mais velha, o que me entristece um pouco.

Soundwise, cada designer é único, como qualquer artista, qualquer indivíduo. Mas sinto que as mulheres têm sempre uma sensibilidade diferente em relação a algumas cenas apresentadas. Parece-me surgir sempre uma certa sutileza que é mais rara de se encontrar num trabalho feito pelos nossos pares masculinos. É-me difícil explicar, but it’s there! Acho que toda gente sente o mesmo. E isso é uma mais-valia num momento em que vejo uma crescente consciencialização de que as coisas têm que mudar. E estão! Hoje precisamos, mais do que nunca, de contar mais histórias de mulheres, e precisamos que sejam mulheres a fazê-lo. As mulheres têm uma visão diferente do mundo no seu redor e isso irá definitivamente gerar diferentes obras das que estamos já habituados a consumir over and over again.

O que desejarias para o futuro no que diz respeito à igualdade entre homens e mulheres dentro e fora da tua área profissional?

Que sejamos todos reconhecidos pelo nosso trabalho, não pelo nosso género. E que no fim sejamos todos bem-vindos. Seja quem for e onde for. 

Há alguma mulher que te inspiras profissionalmente?

Isto é sempre muito tricky. Existem tantas, dentro e fora deste meio… Mas pensando assim muito rapidamente diria Mary Jo Lang, foley mixer que iniciou a sua carreira nos anos 80, quando era uma autêntica raridade ter uma mulher nesta função. Tive o prazer de a conhecer em LA, mesmo antes de se reformar e ela marcou-me bastante. Não só pela carreira incrível que teve na Warner, mas especialmente pela sua história e o seu lado humano. A True Queen, I must say! Ainda hoje sigo vários conselhos que me deu.

Qual mensagem deixarias às mulheres do Cinema e Audiovisual?

Tratem as pessoas ao seu redor com respeito, honestidade e humildade. Elas tratar-vos-ão da mesma maneira, se assim o fizerem. Não tenham medo de questionar o porquê das coisas e aprendam a pedir ajuda. Admitir que precisam de ajuda não é um sinal de fraqueza, mas sim um sinal de respeito para com os outros e pelo o que estes podem fazer para contribuir para o vosso crescimento, seja no trabalho e/ou na vida. Arrisquem, se assim vos fizer sentido, e não tenham medo de errar. Errar é uma certeza da vida. E todos os erros ensinam-nos algo. Na realidade, até poderíamos dizer que não existem erros. Apenas coisas que aprendemos. 

Tudo isto faz parte do processo de aprendizagem e pelo caminho encontrarão sempre pessoas prontas a ajudar-vos a crescer, seja a nível laboral e/ou pessoal. Há muito boa gente por aí! For real! Às vezes pode parecer que não, but they're there! E mais importante, não há absolutamente razão nenhuma para que um emprego ou projecto não seja vosso e não deixem que ninguém vos diga algo diferente. Acreditem nas vossas capacidades, desejos e vontades. Esse é o primeiro passo para o sucesso. E nunca, em momento algum, comparem o vosso trabalho e sucesso com o dos outros. Não vale a pena. Apenas sejam vocês mesmas e foquem-se no vosso caminho, não no dos outros. E para finalizar, como digo sempre aos meus alunos, estagiários e aspirantes cineastas, simplesmente vejam filmes! 

A autora é nossa associada: Kathrin Frank 

ANA SOFIA FONSECA - ENTREVISTA

Nome: Ana Sofia Fonseca

Idade: 43 anos

Profissão: Realizadora e Jornalista

Trabalhos recentes: Histórias com gente dentro (programa de TV) e Cesária Évora (documental)

Onde e em qual função estás a trabalhar? Qual é a tua situação profissional actual?

Trabalhar como realizadora é, sem dúvida, o que mais gosto de fazer. Desempenho também funções de produtora na Carrossel Produções.

Quais condições poderiam ser melhoradas para as mulheres na área do Cinema e Audiovisual?

Na sociedade em geral, as mulheres continuam a não ter os mesmos direitos do que os homens. E o cinema não é excepção. Acredito que é preciso fomentar a igualdade também nesta área, promovendo, por exemplo, o acesso à profissão, nomeadamente a áreas habitualmente consideradas mais de “homens”.

O que desejarias para o futuro no que diz respeito à igualdade de género e diversidade dentro e fora da tua área profissional?

Gostaria que não fosse tão fundamental colocar-se esta questão. Seria sinal de que a igualdade havia realmente passado do discurso para a vida de todos nós.

Há alguma mulher que te inspiras profissionalmente?

Há tantas mulheres brilhantes que é difícil escolher apenas uma. Inspiram-me os filmes de Agnès Varda, de Sofia Coppola, de Lucrecia Martel… A música e a personalidade de Nina Simone. Cesária Évora. As palavras das mulheres da minha família: “Filha, uma mulher nunca depende de um homem”.

Qual mensagem deixarias às mulheres da área do Cinema e Audiovisual?

Vamos contar histórias, vamos contar o mundo como o vivemos. Vamos mostrar o nosso olhar. Um olhar que é “nosso”, mas que é o de cada uma - há plurais que carregam um universo inteiro de singularidades. Parir a MUTIM é um grande passo.

O que é importante para ti na construção das personagens femininas nos filmes que realizas? 

Gosto particularmente de personagens femininas, de dar voz a mulheres (tantas vezes sem voz). Na construção das personagens, interessa-me sempre o lado mais subjectivo, a forma como se relacionam com o mundo, como experienciam os dias. Importa-me a intimidade, mas sem voyerismo. No caso concreto de Cesária Évora, quis perceber as suas fragilidades e forças, o seu amor à liberdade, a sua consciência social. A Cesária desconhecia conceitos como igualdade de género ou empoderamento feminino, mas a sua forma de viver era uma forma de luta contra preconceitos. 

autora: Kathrin Frank

revisão: Lídia Mello